HOJE É
DOMINGO
Memórias…
Um homem sem memória e sem recordações, sem acesso ao seu passado é como um balão vazio, um saco amarfanhado esquecido no chão do tempo.
É este o grande desafio da velhice, não as doenças ou a morte que está certa, mas antes manter vivo dentro de si aquilo que foi o seu passado ou pelo menos apontamentos dele que a nossa memória, gentilmente, nos oferece muitos anos depois de os termos vivido:
- “Nosso Alferes”, disse-me o capitão, comandante de Companhia, “temos informações do Comando de Batalhão que amanhã, um importante chefe terrorista vai deslocar-se para a nossa zona de actuação, vindo do Norte de Angola, da região de Nanbuangogo, atravessando a estrada do Úcua / Quibaxe. O nosso Alferes vai com os seus homens emboscar a estrada para o interceptar.”
Estávamos sensivelmente a meio do primeiro semestre do ano de 1963 e a guerrilha contra as tropas portuguesas debatia-se com falta de quadros qualificados e estes guerrilheiros especializados que lideravam a população inexperiente e desmoralizada, fugida para a mata depois das represálias devastadoras do exército português, representavam uma séria ameaça para as nossas tropas.
A ordem recebida não era mais que uma tentativa vaga de resultados pouco credíveis, no fundo, uma satisfação para não se dizer que face àquela informação as tropas no terreno nada fizeram. Íamos esperar sentados, deitados no capim, escondidos, quem sabe se alguém, por acaso, iria passar a estrada à nossa vista?…
O local escolhido foi ao fundo de uma longa recta, a subir e antes da estrada virar para a direita. A visibilidade era boa, a estrada alcatroada e a esperança de ver alguém, espingarda nas mãos, a tentar atravessar à socapa, de um lado para o outro, parecia-me uma miragem…eram muitos os quilómetros em que a estrada podia ser atravessada e a informação, muito provavelmente, não passaria de uma “boca” para satisfazer ouvidos curiosos.
Instalámo-nos debaixo de uma árvore, pouco mais que um arbusto grande rodeado de capim seco suficientemente alto para nos proteger das vistas na posição de deitados… e ali ficámos um dia e uma noite até ao fim da tarde do segundo dia.
Pela primeira vez os papéis estavam invertidos, sensação estranha, tínhamos vantagem, éramos nós que emboscávamos… O silêncio instalou-se, o dia estava bom, apenas o sussurrar da brisa acariciando a vegetação, os soldados pensariam na família ou na namorada, nenhuma tensão, nenhum nervosismo, o nosso instinto dizia-nos que nada ia acontecer.
Para ocupar o tempo fixava o olhar estrada abaixo, para acompanhar com a vista alguma camioneta que se aventurava a uma possível emboscada pela necessidade de satisfazer a economia do café, estrebuchante depois do início da guerra, quase dois anos antes, quando muitas das roças foram provisoriamente abandonadas.
Os civis portugueses eram valentes, corajosos, frustraram os planos de Holden Roberto, líder do Movimento considerado terrorista da UPA (União dos Povos de Angola) que depois das selváticas mortandades ordenadas no norte de Angola sobre a população civil, negros, brancos, mulheres e crianças, em Março de 1961 não assistiu, como ele esperava, à debandada geral dos portugueses como tinha acontecido com os belgas em 1960.
Regressaram as mulheres e as crianças, essas sim… mas os homens puseram uma espingarda ao ombro e por lá ficaram convencidos de que aquela era a terra deles…
Primeiro, ouviu-se um zumbido longínquo que no silêncio da tarde ia pouco a pouco aumentando até começar a espreitar lá ao fundo da estrada. O motorista engrenava então uma mudança e a camioneta abrandava de velocidade e redobrava de esforço e barulho para vencer a subida.
À medida que se aproximava aumentava a nitidez com que víamos o condutor, percebíamos-lhe a tensão, as duas mãos agarrando firmemente o volante, o corpo debruçado para a frente como se nessa posição ajudasse o motor a subir a ladeira.
Umas semanas antes, um deles tinha sido atacado na estrada antes de chegar ao Úcua e a camioneta incendiada. Julguei que tivesse fugido ou sido levado pelos terroristas porque não vi ninguém na cabine até ao momento em que reparei num tição negro, no chão, junto aos pedais. Era o corpo carbonizado.
Teria gostado de enviar a este uma mensagem por telepatia: “descontrai-te, estamos a velar por ti, aqui, na beira da estrada, mais à frente não sabemos…”
Eram alvos indefesos à mercê de um qualquer atirador estrategicamente colocado. Conhecia bem essa sensação… tinha chegado no dia anterior à guerra, no norte de Angola, quando o capitão me mandou escoltar um civil na picada do Úcua para o Pango e pela primeira vez, em cima de um Unimog, mergulhei naquele mundo de verde em que o capim mais alto que um homem se abria para nos deixar passar, aos solavancos, à mercê dos buracos da picada como se a viatura fosse um simples barquito navegando em mar encapelado.
À nossa volta tudo era verde e dissimulado nele, milhões de olhos negros nos espiavam numa ameaça de morte. O medo foi tanto que gelava o olhar e petrificava os rostos. Por isso, compreendia bem aquele que devia ser o estado de espírito daquele homem que a meia dúzia de metros de onde eu estava escondido passava agora por mim segurando com frenesim, o volante da camioneta.
Dentro de poucas semanas, neste ano de 2012 que já entrou, vão fazer quarenta e nove anos sobre estes factos, por isso, termino como comecei:
- “Um homem sem recordações é como um balão vazio, um saco amarfanhado esquecido no chão do tempo…”
Bom Domingo e Bom Ano Novo.
DOMINGO
Memórias…
Um homem sem memória e sem recordações, sem acesso ao seu passado é como um balão vazio, um saco amarfanhado esquecido no chão do tempo.
É este o grande desafio da velhice, não as doenças ou a morte que está certa, mas antes manter vivo dentro de si aquilo que foi o seu passado ou pelo menos apontamentos dele que a nossa memória, gentilmente, nos oferece muitos anos depois de os termos vivido:
- “Nosso Alferes”, disse-me o capitão, comandante de Companhia, “temos informações do Comando de Batalhão que amanhã, um importante chefe terrorista vai deslocar-se para a nossa zona de actuação, vindo do Norte de Angola, da região de Nanbuangogo, atravessando a estrada do Úcua / Quibaxe. O nosso Alferes vai com os seus homens emboscar a estrada para o interceptar.”
Estávamos sensivelmente a meio do primeiro semestre do ano de 1963 e a guerrilha contra as tropas portuguesas debatia-se com falta de quadros qualificados e estes guerrilheiros especializados que lideravam a população inexperiente e desmoralizada, fugida para a mata depois das represálias devastadoras do exército português, representavam uma séria ameaça para as nossas tropas.
A ordem recebida não era mais que uma tentativa vaga de resultados pouco credíveis, no fundo, uma satisfação para não se dizer que face àquela informação as tropas no terreno nada fizeram. Íamos esperar sentados, deitados no capim, escondidos, quem sabe se alguém, por acaso, iria passar a estrada à nossa vista?…
O local escolhido foi ao fundo de uma longa recta, a subir e antes da estrada virar para a direita. A visibilidade era boa, a estrada alcatroada e a esperança de ver alguém, espingarda nas mãos, a tentar atravessar à socapa, de um lado para o outro, parecia-me uma miragem…eram muitos os quilómetros em que a estrada podia ser atravessada e a informação, muito provavelmente, não passaria de uma “boca” para satisfazer ouvidos curiosos.
Instalámo-nos debaixo de uma árvore, pouco mais que um arbusto grande rodeado de capim seco suficientemente alto para nos proteger das vistas na posição de deitados… e ali ficámos um dia e uma noite até ao fim da tarde do segundo dia.
Pela primeira vez os papéis estavam invertidos, sensação estranha, tínhamos vantagem, éramos nós que emboscávamos… O silêncio instalou-se, o dia estava bom, apenas o sussurrar da brisa acariciando a vegetação, os soldados pensariam na família ou na namorada, nenhuma tensão, nenhum nervosismo, o nosso instinto dizia-nos que nada ia acontecer.
Para ocupar o tempo fixava o olhar estrada abaixo, para acompanhar com a vista alguma camioneta que se aventurava a uma possível emboscada pela necessidade de satisfazer a economia do café, estrebuchante depois do início da guerra, quase dois anos antes, quando muitas das roças foram provisoriamente abandonadas.
Os civis portugueses eram valentes, corajosos, frustraram os planos de Holden Roberto, líder do Movimento considerado terrorista da UPA (União dos Povos de Angola) que depois das selváticas mortandades ordenadas no norte de Angola sobre a população civil, negros, brancos, mulheres e crianças, em Março de 1961 não assistiu, como ele esperava, à debandada geral dos portugueses como tinha acontecido com os belgas em 1960.
Regressaram as mulheres e as crianças, essas sim… mas os homens puseram uma espingarda ao ombro e por lá ficaram convencidos de que aquela era a terra deles…
Primeiro, ouviu-se um zumbido longínquo que no silêncio da tarde ia pouco a pouco aumentando até começar a espreitar lá ao fundo da estrada. O motorista engrenava então uma mudança e a camioneta abrandava de velocidade e redobrava de esforço e barulho para vencer a subida.
À medida que se aproximava aumentava a nitidez com que víamos o condutor, percebíamos-lhe a tensão, as duas mãos agarrando firmemente o volante, o corpo debruçado para a frente como se nessa posição ajudasse o motor a subir a ladeira.
Umas semanas antes, um deles tinha sido atacado na estrada antes de chegar ao Úcua e a camioneta incendiada. Julguei que tivesse fugido ou sido levado pelos terroristas porque não vi ninguém na cabine até ao momento em que reparei num tição negro, no chão, junto aos pedais. Era o corpo carbonizado.
Teria gostado de enviar a este uma mensagem por telepatia: “descontrai-te, estamos a velar por ti, aqui, na beira da estrada, mais à frente não sabemos…”
Eram alvos indefesos à mercê de um qualquer atirador estrategicamente colocado. Conhecia bem essa sensação… tinha chegado no dia anterior à guerra, no norte de Angola, quando o capitão me mandou escoltar um civil na picada do Úcua para o Pango e pela primeira vez, em cima de um Unimog, mergulhei naquele mundo de verde em que o capim mais alto que um homem se abria para nos deixar passar, aos solavancos, à mercê dos buracos da picada como se a viatura fosse um simples barquito navegando em mar encapelado.
À nossa volta tudo era verde e dissimulado nele, milhões de olhos negros nos espiavam numa ameaça de morte. O medo foi tanto que gelava o olhar e petrificava os rostos. Por isso, compreendia bem aquele que devia ser o estado de espírito daquele homem que a meia dúzia de metros de onde eu estava escondido passava agora por mim segurando com frenesim, o volante da camioneta.
Dentro de poucas semanas, neste ano de 2012 que já entrou, vão fazer quarenta e nove anos sobre estes factos, por isso, termino como comecei:
- “Um homem sem recordações é como um balão vazio, um saco amarfanhado esquecido no chão do tempo…”
Bom Domingo e Bom Ano Novo.
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