GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 70
A conversa generalizava-se, falava-se de uma mesa para a outra, e nem uma voz se levantava, naquela ruidosa assembleia, onde alguns dos notáveis da cidade se reuniam, em defesa da maturidade em fogo de Sinhàzinha, trinta e cinco anos de adormecidos desejos despertados subitamente pela lábia do dentista e transformados em crepitante paixão.
A lábia do dentista e suas melenas ondeadas, seus olhos derramados, tristonhos como os da imagem de são Sebastião trespassado de flechas no altar-mor da pequena igreja da praça, ao lado do bar.
Ari Santos, companheiro do dentista nas sessões literárias do Grémio Rui Barbosa, onde declamavam versos e liam prosa nas manhãs de Domingo para reduzido auditório, contava como tudo começara: primeiro ela achara Osmundo parecido com São Sebastião, santo de sua devoção, os mesmos olhos, iguaizinhos.
Esse negócio de muito frequentar a igreja dá nisso… - comentou Nhô-Galo, anticlerical conhecido.
- É mesmo… - concordou o coronel Ribeirinho – Mulher casada que vive agarrada em saia de padre não é boa bisca…
Três dentes a obturar e a voz melosa do dentista ao ritmo do motor japonês, as palavras bonitas em comparações que nem versos…
- Ele tinha veia, afirmava o Doutor – uma vez declamou-me uns sonetos, primorosos. Rimas soberbas. Dignos de Olávio Bilac.
Tão diferente do marido, áspero e soturno, vinte anos mais velho do que ela, o dentista doze anos mais moço! E aqueles olhos súplices de são Sebastião… Meu Deus!, que mulher resistiria, sobretudo mulher na força da idade, com marido velho vivendo mais na roça que em casa, farto da esposa, doido por cabrochas novas na fazenda, caboclinhas em flor, brusco nos modos, e ademais mulher sem filhos nos quais pensar e dos quais cuidar. Como resistir?
- Não me venha defendê-la, a sem vergonha, meu caro Sr. Ari Santos… - cortou o Dr. Maurício Caíres – Mulher honrada é fortaleza inexpugnável.
- O sangue… - disse o Doutor, a voz lúgubre como sob o peso de uma maldição eterna – O sangue terrível dos Ávilas, o sangue de Ofenísia…
- E você a dar com o sangue… Querendo comparar uma história platónica que não passou de olhares sem consequência com essa orgia imunda. Compara uma fidalga inocente com uma bacante, o nosso sábio Imperador, modelo de virtudes, com esse dentista depravado…
- Quem está comparando? Falo apenas da hereditariedade, do sangue da minha gente…
- Não defendo ninguém – afirmou Ari – estou apenas contando.
- Sinhàzinha foi deixando as festas da Igreja, frequentou os chás dançantes do Clube Progresso…
- Factor de dissolução dos costumes… - interrompeu Dr. Maurício.
- … foi prolongando o tratamento, já agora sem motor, trocando a cadeira de metais rutilantes do consultório pelo leito negro do quarto – Chico Moleza, parado com uma garrafa e um copo na mão, recolhia àvidamente os detalhes, arregalados os olhos adolescentes, aberta também a boca num riso idiota. Ari Santos concluía com uma frase que lhe parecia lapidar:
- E assim o destino transforma uma senhora honesta, religiosa e tímida em heroína de tragédia…
A conversa generalizava-se, falava-se de uma mesa para a outra, e nem uma voz se levantava, naquela ruidosa assembleia, onde alguns dos notáveis da cidade se reuniam, em defesa da maturidade em fogo de Sinhàzinha, trinta e cinco anos de adormecidos desejos despertados subitamente pela lábia do dentista e transformados em crepitante paixão.
A lábia do dentista e suas melenas ondeadas, seus olhos derramados, tristonhos como os da imagem de são Sebastião trespassado de flechas no altar-mor da pequena igreja da praça, ao lado do bar.
Ari Santos, companheiro do dentista nas sessões literárias do Grémio Rui Barbosa, onde declamavam versos e liam prosa nas manhãs de Domingo para reduzido auditório, contava como tudo começara: primeiro ela achara Osmundo parecido com São Sebastião, santo de sua devoção, os mesmos olhos, iguaizinhos.
Esse negócio de muito frequentar a igreja dá nisso… - comentou Nhô-Galo, anticlerical conhecido.
- É mesmo… - concordou o coronel Ribeirinho – Mulher casada que vive agarrada em saia de padre não é boa bisca…
Três dentes a obturar e a voz melosa do dentista ao ritmo do motor japonês, as palavras bonitas em comparações que nem versos…
- Ele tinha veia, afirmava o Doutor – uma vez declamou-me uns sonetos, primorosos. Rimas soberbas. Dignos de Olávio Bilac.
Tão diferente do marido, áspero e soturno, vinte anos mais velho do que ela, o dentista doze anos mais moço! E aqueles olhos súplices de são Sebastião… Meu Deus!, que mulher resistiria, sobretudo mulher na força da idade, com marido velho vivendo mais na roça que em casa, farto da esposa, doido por cabrochas novas na fazenda, caboclinhas em flor, brusco nos modos, e ademais mulher sem filhos nos quais pensar e dos quais cuidar. Como resistir?
- Não me venha defendê-la, a sem vergonha, meu caro Sr. Ari Santos… - cortou o Dr. Maurício Caíres – Mulher honrada é fortaleza inexpugnável.
- O sangue… - disse o Doutor, a voz lúgubre como sob o peso de uma maldição eterna – O sangue terrível dos Ávilas, o sangue de Ofenísia…
- E você a dar com o sangue… Querendo comparar uma história platónica que não passou de olhares sem consequência com essa orgia imunda. Compara uma fidalga inocente com uma bacante, o nosso sábio Imperador, modelo de virtudes, com esse dentista depravado…
- Quem está comparando? Falo apenas da hereditariedade, do sangue da minha gente…
- Não defendo ninguém – afirmou Ari – estou apenas contando.
- Sinhàzinha foi deixando as festas da Igreja, frequentou os chás dançantes do Clube Progresso…
- Factor de dissolução dos costumes… - interrompeu Dr. Maurício.
- … foi prolongando o tratamento, já agora sem motor, trocando a cadeira de metais rutilantes do consultório pelo leito negro do quarto – Chico Moleza, parado com uma garrafa e um copo na mão, recolhia àvidamente os detalhes, arregalados os olhos adolescentes, aberta também a boca num riso idiota. Ari Santos concluía com uma frase que lhe parecia lapidar:
- E assim o destino transforma uma senhora honesta, religiosa e tímida em heroína de tragédia…
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