domingo, abril 08, 2012

HOJE É DOMINGO
(Na minha cidade de Santarém)

Com o regresso do frio e da chuva, (é precisa muito mais) voltou a nostalgia dos meus tempos de juventude e das férias no Inverno na aldeia dos meus avós. As noites de frio à lareira, debaixo da chaminé, sentado naquelas cadeirinhas pequenas, com palhinha no assento e comuns a todas as aldeias do interior do nosso país, voltaram à minha lembrança.

Não esqueço aquela sensação de intimidade e cumplicidade com o fogo das cavacas, o crepitar discreto da madeira ao arder soltando faíscas, as chamas acolhedoras para as quais estendíamos as mãos quando chegávamos com elas frias da rua, o controle da fogueira que se ia consumindo, o calor vivo e companheiro, nosso amigo, a exigir a nossa atenção… saudades.

Mesmo quando todos se iam deitar primeiro, o fogo da lareira não me deixava ficar sozinho, de resto, eu ficava por causa dele, tinha que aproveitar a sua companhia naqueles poucos dias de férias e ali ficava mais um bocado mexendo nas brasas, ajeitando-as. Lembro-me de o meu pai às vezes me repreender: - “Deixa estar o fogo quieto!”.

Milhares de anos depois de tudo ter começado à volta de uma fogueira, a minha geração despedia-se delas… ficaram como algo de exótico aqui e ali, manifestação de bom gosto e de riqueza… sobraram para os outros os frios e desenxabidos aquecedores eléctricos, metálicos, mudos e indiferentes.

Para trás das chamas a palpitar no fogo das lareiras no convívio da família, dos amigos, do grupo, ficava a história da humanidade que começou com a fuga ao pesadelo das noites frias e escuras, em cima de árvores, mais tarde em saliências rochosas e abrigos rudimentares.

Quantos planos e projectos foram combinados ao calor protector uma fogueira? Quantos olhares feitos de promessas se cruzaram muito antes mesmo das declarações de amor?

À volta de uma fogueira desenharam-se as portas da evolução da nossa espécie, nasceu o acreditar nas nossas capacidades. Sem o fogo domesticado, acolhedor, ali aos seus pés, as noites dos nossos antepassados teriam continuado a ser de pesadelo, à mercê das feras, sem futuro, condenados.

Por essas alturas éramos muito poucos, algumas centenas de milhar de indivíduos em todo o mundo, extraordinariamente dispersos e com uma duração média de vida que não ultrapassaria os 20 ou 25 anos.

À volta de uma fogueira a vida social estruturou-se, os laços familiares estreitaram-se e o que seria o dia de amanhã ganhou mais consistência.

Domesticar o fogo terá sido, com certeza, um objectivo perseguido com grande determinação, muitas frustrações, dissabores e acidentes diversos à mistura.

Qualquer um de nós que tenha um fogão de sala deveria ter um pensamento para esses nossos antepassados quando, nas noites de Inverno, acende a lareira, promovida a fogão de sala, à inglesa “fire place”, recorrendo, com toda a facilidade, às acendalhas que comprou no supermercado e, mesmo hoje, no conforto das nossas casas feitas apartamentos, é sentido como o crepitar das chamas da fogueira nos transmite bem-estar, tranquilidade, paz e intimidade.

Os restos mais antigos do que poderia ser uma lareira foram descobertos na gruta de Escale, em França, datados de há 750.000 anos, mas vestígios de lareiras realmente estruturados que sem qualquer espécie de dúvidas podem ser atribuídos ao homem, só a partir de há 500.000 anos na Europa ou ainda na Ásia e mais tarde nas regiões tropicais de África onde o frio causava menos problemas.

O homem que primeiro utilizou o fogo nós o denominamos de Herectus e essa utilização foi, certamente, muito anterior à descoberta da técnica para o produzir.

Primeiramente, seria simplesmente apanhado durante um acidente natural, o raio de uma trovoada ou um vulcão e depois transportado, mantido e vigiado e não admira nada que se tivessem registado confrontos violentos entre quem o tinha, para o defender, e de quem o procurava para roubar.

O domínio da técnica do fogo com consequências decisivas no processo evolutivo da nossa espécie é contemporâneo do aumento evidente do volume do cérebro que, por sua vez, acompanhou a evolução constante das técnicas utilizadas na confecção dos utensílios de pedra cada vez mais numerosos, eficazes e também mais elegantes, facto que pode traduzir um desejo novo de procura estética com uma nova cultura que se sobrepõe à simples técnica.

Aprender a fazer fogo resultou da observação ao perceberem que ele aumentava pelo aquecimento de galhos ou folhas secas o que lhes permitiu concluir que a chama poderia ser iniciada com temperaturas elevadas.

Desta forma, descobriram que o atrito entre dois paus de madeira aumentava a temperatura e produzia a chama que depois poderia ser activada com a ajuda de pequeninas palhas secas e um ligeiro sopro.

Mas eles observaram também que o choque entre duas pedras produzia faíscas e que se colocassem galhos ou folhas secas junto dessas faíscas conseguiam obter fogo. Esta técnica veio até aos nossos dias com os isqueiros de pederneira de que ainda me lembro muito bem nas mãos dos velhos fumadores na aldeia dos meus avós.

Os nossos antepassados tinham tendência para adorarem tudo de que dependiam as suas vidas (hoje não é diferente…) e o fogo, pela sua importância, era considerado sagrado e tributavam-lhe danças em sua homenagem.

Mais tarde, ao longo da história, os homens viriam a dançar por muitas outras coisas… mas a primeira dança, a que abriu caminho a todas as outras foi, sem dúvida, a do fogo, considerado símbolo divino da vida.

Foram muitas as alterações que o domínio do fogo, e principalmente a sua utilização na confecção dos alimentos, trouxe para a evolução da nossa espécie:

- Ao deixar de comer carne crua sofremos mudanças ao nível dos maxilares e dos dentes, da forma do rosto e do aparelho digestivo que, por sua vez, provocaram alterações no aparelho vocal e o homem que era Herectus passou a ser Sapiens Sapiens:

- As cavernas passaram a ser iluminadas e podiam aquecer-se nas noites frias tornando a vida mais fácil e agradável;

- O fogo facilitou a vida em grupo e melhorou as relações de convivência das primeiras comunidades;

- Como conviviam mais passaram da fase dos gestos à fase da comunicação através de sons articulados e de palavras desenvolvendo a própria linguagem;

- Os instrumentos utilizados na caça e na pesca foram aperfeiçoados, começaram a trabalhar a pontas das setas, endireitaram as armas de arremesso, fabricaram instrumentos para a guerra e começaram a caçar mais e animais mais variados;

-Defendeu-se melhor das feras que os cercava diminuindo a mortalidade precoce e aumentando, por conseguinte, os níveis populacionais;

- Melhor alimentado, o organismo tornou-se mais forte no combate às doenças e por isso viveu mais anos.

Não mais qualquer outra técnica foi tão decisiva para o destino da humanidade como aquela que nos permitiu produzir e controlar o fogo porque, sem ela, pelo menos, esta humanidade não existiria.

Como não haverei eu, menino de cidade que fui, ter saudades da lareira na casa dos meus avós durante as férias no Inverno?



(Click no Largo do Pátio Chiquito na cidade de Santarém)

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