quarta-feira, maio 30, 2012


GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 111



Nas roças, os frutos de cacau punham-se de vez, todas as gamas do amarelo na paisagem, um ar doirado. O tempo da colheita aproximava-se, de safra tão grande jamais se tivera notícia.

Gabriela guardava enorme tabuleiro de doces. Outro, ainda maior de acarajés, abarás, bolinhos de bacalhau, frigideiras. O moleque Tuísca pitando uma ponta de cigarro, esperava a contar-lhe conversas do bar, miúdos acontecimentos, aqueles a afectá-lo mais particularmente: os dez pares de sapatos de Mundinho Falcão, as partidas de futebol na praia, um roubo acontecido na loja de fazendas, o anúncio da próxima chegada do Grande Circo Balcânico com elefante e girafa, leões e tigres.

Gabriela ria, ouvindo, ficou atenta às notícias do circo:

 - Vem mesmo?

 - Já tem anúncio nos postes.

Uma vez teve um circo por lá. Fui com a tia para ver. Tinha um homem que comia fogo.

Tuísca fazia projectos: quando o circo chegasse, ele acompanharia o palhaço em seu percurso pela cidade, montado de costas num jumento. Assim acontecia sempre, cada vez que um circo armava seu pavilhão no descampado da banca de peixe. O palhaço a perguntar:

 - Palhaço o que é?

A meninada a responder:

 - É ladrão de mulher…

O palhaço marcava-lhe a testa com cal, ele entrava de graça no espectáculo à noite. Quando não ajudava os “mata-cachorros” na arrumação do picadeiro, fazendo-se indispensável e íntimo. Nessas ocasiões abandonava sua caixa de engraxate.

 - Um circo quis me levar. O director me chamou…

 - De mata-cachorros?

Tuísca quase se ofendeu.

 - Não, de artista.

 - O que é que tu ia fazer?

Iluminou-se o rostinho negro:

 - Pra ajudar com os macacos, aparecer com eles. E pra dançar também… Só não fui por causa de mamãe… – A negra Raimunda estava entrevada de reumatismo, incapacitada de exercer sua profissão de lavadeira; os filhos sustentavam a casa: Filó, “chauffer” de marinete e Tuísca, mestre de várias artes.

 - E tu sabe dançar?

- Nunca viu? Quer ver?

Imediatamente pôs-se a dançar, tinha a dança dentro de si, os pés criando passos, o corpo solto, as mãos batendo o ritmo. Gabriela olhava, como ela era igual, não se conteve. Abandonou tabuleiros e panelas, salgados e doces, a mão a suspender a saia. Dançavam agora os dois, o negrinho e a mulata, sob o sol do quintal. Nada mais existia no mundo.

Em certo momento Tuísca parou, ficou apenas a bater as mãos sobre um tacho vazio, emborcado. Gabriela volteava, a saia voando, os braços indo e vindo, o corpo a dividir-se, as ancas a rebolar, a boca a sorrir.
(Click na imagem de uma pintura da colheita do cacau na Bahía. "As gamas de amarelo na paisagem, um ar doirado..."

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