HOJE É DOMINGO
DIA DE PORTUGAL
NO JARDIM DA MINHA
CIDADE DE SANTARÉM
Março de 1965…, 43 anos depois o Paquete Vera Cruz aproxima-se
lentamente do Porto da Rocha do Conde de Óbidos como se estivesse relutante em
devolver ao país os soldados que levara dos braços dos familiares para a
incerteza de um destino que se chamava: Guerra de Angola.
Ou talvez fossem pruridos de quem tinha a consciência
pesada por devolver apenas uma parte da carga, ainda que a maior, que levara 27
meses antes mas, para uma mãe que não tenha recebido de volta o seu
filho que lhe interessava aqueles que voltavam se entre eles não estava o seu, senão
para aumentar a sua dor?
Em outros tempos, os das caravelas, teria sido necessário às mães esperar
que todos saíssem até perderem a esperança de verem chegar o seu filho mas na
década de sessenta do século XX as notícias da morte já chegavam rápidas e
dispensavam as esperas inúteis.
A sorte das mães portuguesas desde que iniciámos as
nossas aventuras pelas terras de além-mar esteve sempre ligada a uma praia ou a
um porto na ânsia de um filho ou de um marido que tarda em chegar abrindo ferida no coração.
Lembro-me de dois soldados, meus camaradas de guerra,
que numa emboscada em vez de terem sido mortos foram levados pelo inimigo,
raptados, e nunca mais soubemos deles.
Que teriam dito à família?
- O seu filho fugiu, desapareceu? - Passou-se para o inimigo? - Levaram-no? Em rigor, não
sabemos se está vivo ou morto. Simplesmente, desapareceu em combate...
Que espaço terá ficado para uma réstia de esperança
daquelas mães indecisas sem saberem ao certo o que aconteceu aos seus filhos?
Recordo essa lenta aproximação do Paquete Vera Cruz o
suficiente para saber que não estava eufórico, nem contente, nem feliz, talvez
aliviado… agradecido por estar ali, de novo, vivo e escorreito e se 27 meses
antes não queria pensar naquilo que me poderia esperar numa situação que
desconhecia por completo, também, naquele momento, não queria pensar no meu
futuro.
Casado prematuramente, com um filho, sem casa, sem
emprego, com um curso superior inacabado, restava-me a casa do meu sogro para
uma situação humilhante de favor…
Que outras “guerras”, então, me esperariam?
Por isso, não queria pensar, estava a chegar de uma
guerra, tinha direito a uma pausa. Naqueles momentos, enquanto o Vera Cruz não atracava,
tudo estava em suspenso, até as responsabilidades que me esperavam.
Depois, o impacto daqueles 27 meses, os últimos 15 em
convivência pacífica com os Luenas, nas chamadas “terras do fim do mundo”, no
distrito do Moxico, no Alto Zambeze, estava ainda demasiado presente dentro de
mim.
África é como uma mulher que nos possui e mesmo quando
já longe continuamos a senti-la, nos seus cheiros, nos seus contornos, na sua
música e em todo aquele espaço a perder de vista à nossa volta. Enche-nos a alma,
dá-nos a noção da nossa dimensão nesta Terra a que pertencemos. Que pena, a guerra!...
Lentamente, o Vera Cruz foi-se encostando ao cais e a
agitação das pessoas que nos esperavam e o seu nervosismo quase que se podia
sentir à distância de uma amurada.
Pensando bem, o tempo tinha custado mais a passar a
eles do que a nós porque sempre foi assim entre aquele que parte e o que fica a
aguardar a chegada do que partiu.
É ele que tem coisas para contar ou para silenciar, às
vezes em definitivo, como aquele soldado que trazendo consigo uma doença
venérea se suicidou atirando-se ao mar já à vista de Lisboa porque não suportou
a ideia de um reencontro com a mulher naquela situação.
Quantas coisas não cabem dentro de uma guerra!
1 de Março de 2008… quarenta e três anos depois… Olhão, "Churrasqueira O Franguinho". Paro o carro no estacionamento em frente do
Restaurante onde cerca de trinta senhores, alguns carecas, barrigudos, cabelos
brancos, muitos acompanhados das esposas, filhos e netos, fizeram o favor de
não se sentarem à mesa antes de eu chegar. Eles já não me reconheciam da
mesma forma que eu tive de fazer um grande esforço, maior ou menor conforme os
casos, para descobrir nas feições enrugadas e envelhecidas os jovens que tinha
deixado quarenta e três anos atrás.
Como foi bom abraçá-los ao fim de uma vida, como
sentimos, na sinceridade daqueles abraços, como tinham sido importantes os 27
meses vividos em conjunto em Angola.
Como foi bom descobrir, a pouco e pouco, naquelas rostos já curtidos pela idade, escondidas pelas rugas, cabelos brancos, calvice, os jovenzinhos, companheiros de aventuras de há tantos anos atrás e que tinham ficado a pairar nas nossas memórias.
Como foi bom descobrir a existência de um novo laço de
afinidade entre as pessoas que tem a ver com o passado, um certo passado…que
hoje me parece ter sido, fundamentalmente, uma aventura de jovens, em cenários surpreendentes
de beleza e exotismo, que teve riscos de vida, momentos de entreajuda, outros
de cumplicidade mas muitos, mesmo muitos, de uma enorme naturalidade, sem
stress ou preocupações, como foram todos aqueles que vivi no Lumbala, nas
margens do Rio Zambeze, onde aprendi a nadar pela simples circunstância de que
as águas subiram na altura das chuvas e eu fiquei sem pé no local onde me banhava com os meus
camaradas.
O crocodilo que meses mais tarde me foi dado conhecer
e que connosco partilhava aquela zona do rio, ainda que apanhando sol na
outra margem, só veio provar que o mundo, sendo pequeno, dá para todos…mas a
partir desse dia cada um no seu lugar, ele, no rio, nós fora dele.
Deixei a promessa de que estaria presente em todos
os almoços anuais com os meus “irmãos” da guerra de Angola na esperança de que
eles aconteçam ainda durante muitos anos e de que me seja dada a oportunidade
de abraçar muitos outros que não estiveram presentes daquela vez. E assim tem sido desde aquele ano de 2008.
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