HOJE É
DOMINGO
(Da minha cidade de Santarém)
Nos meus tempos de rapaz, durante as
férias de Verão na aldeia dos meus avós, na Beira-Baixa, nada me dava mais
prazer e provocava maior excitação do que levantar-me de madrugada, ainda antes
do nascer do sol, para ir à caça dos passarinhos ou à pesca no rio Tejo.
A ansiedade era tanta que quando o meu
velho amigo Adriano, empregado dos meus avós – naquele tempo chamava-se criado
- batia aos vidros da janela do meu quarto para me acordar, precisamente na
hora e minuto combinados, ele que nunca teve relógio, já eu estava
perfeitamente desperto aguardando que ele me chamasse. Eu tinha por este homem
uma grande amizade e escondida admiração. Era uma relação que tinha começado nos meus tempos de bebé quando a família ia para a aldeia e lembro-me de pensar, na minha
ingenuidade de criança que ainda era nesse tempo, que se alguém havia de ir
para o céu era o Adriano. No seu funeral chorei sentidamente o que deve ter
provocado a admiração da reduzida assistência.
Por que chora o rapazinho? Devem ter
pensado… não lhe era nada, apenas neto do patrão… por que chora ele? - Nunca
compreenderiam se eu ousasse dizer mas ainda hoje, tantos anos volvidos, gosto
de pensar no meu amigo Adriano… e sei que estou sozinho nesses pensamentos como
o estava quando chorei no seu funeral.
Eu penso que há muito deixaram de haver
pessoas como o Adriano. Já não era, sequer, do tempo da minha infância. Sabia muita coisa sobre as estrelas e o céu porque era
ele o teto do seu quarto em todas as noites de verão quando fazia bom tempo.
Nunca o ouvi expressar um desejo, nunca o vi calçado, excepção feita ao dia da festa anual da freguesia, nunca o ouvi pedir nada que não fossem as "ordes" ao meu pai para o outro dia, mas manifestava-se agradecido quando a minha avó, pela manhã, lhe
dava um cálice de aguardente.
E lá ia eu, água passada pelos olhos a fugir, sapatilhas nos pés, com toda aquela força e espontaneidade dos
Sei hoje, que da mesma forma que a minha
herança biológica está inscrita no meu ADN, também, em qualquer “gavetinha”
recôndita do meu cérebro, estão guardadas memórias de comportamentos ancestrais
dos meus antepassados que viveram na Europa há cerca de 30.000 anos.
Em cada um de nós há um caçador que descende do Homem de Cro-Magnon, nosso remoto avô, que ao longo de milhares de anos tinha que se levantar cedo, talvez sem o meu entusiasmo de criança, para fazer as suas armadilhas, perseguir e caçar os animais que depois de mortos transportava às costas para o acampamento onde as mulheres, crianças e velhos o aguardavam.
Não duvido que o prestígio, a
importância, o status do meu “avô” Cro-Magnon, se media pelo tamanho e número
das peças de caça que transportava para a improvisada aldeia ou seja, pela sua
destreza e eficácia no abastecimento de carne ou talvez, melhor dizendo, pelo
papel de liderança e coragem demonstrada dentro do grupo que empreendia as
caçadas.
Essa eficácia traduzia-se em admiração
que fazia dele um homem desejado pelas mulheres e respeitado pelos outros e por
isso, lá estava eu, trinta mil anos depois, no regresso do rio, a “macaquear” o
meu “avô Cro-Magnon, percorrendo, orgulhoso, a aldeia com o peixe de meio qui lo (nas poucas vezes que o apanhava,..), seguro
pelas guelras num convite implícito ao aplauso de todos aqueles com quem me
cruzava…
Mas antes de o levar para casa e como
“cereja que se põe no topo do bolo”, ia pesá-lo na balança da mercearia do Zé
Palmeiro, o mais convencido dos pescadores da aldeia que, roído de inveja, lá
dizia com um sorriso de despeito, o resultado da pesagem.
Na realidade, entre os Homens de Cro-Magnon
a alimentação não dependia tanto do resultado das caçadas como durante muito
tempo se pensou. A análise laboratorial dos restos encontrados nos locais onde
viveram, indicam que quem mais contribuía para o sustento do grupo eram as
mulheres e as crianças que percorrendo os terrenos em redor recolhiam frutos,
raízes, tubérculos, ovos que chegavam a representar, nas zonas mais quentes,
80% da totalidade dos alimentos consumidos.
Na verdade, o meu “avô” Cro-Magnon me
desculpe mas, importante mesmo, nesses tempos, era a minha “avó”… isto não
obstante ele ser bem apessoado. A fronte, alta, não era sobrecarregada por
saliências supra-orbitrais, o queixo saliente e o occipital arredondado com um
volume encefálico de 1.500 cm3, em média, pouco superior ao dos europeus
actuais. Tinha 174 cm
de altura média que só agora os europeus estarão a atingir e sendo bem parecido
de feições, desde que vestido, barbeado e de cabelinho cortado, ninguém o
reconheceria ao passar por ele no Chiado.
De resto, a sua indumentária também não
seria muito diferente da nossa, toda ela constituída por peles de animais
cortadas de forma a confeccionar botas, casacos e calças bem ajustadas ao corpo
graças às costuras que se tornaram possíveis devido ao uso das agulhas e dos
botões feitos de osso ou chifre.
E do ponto de vista intelectual ou
neurológico, se qui serem, teria
perfeitamente sido capaz de ir à lua se o contexto social lhe oferecesse as
condições certas.
Embora a sua esperança média de vida à
nascença fosse reduzida face à grande mortalidade pré-natal e infantil, às
infecções e aos múltiplos acidentes, os adolescentes e os adultos jovens eram
sãos, robustos, capazes de actividade física intensa como se pode deduzir pela
inserção dos músculos nos ossos e pelo estado das articulações próprias de quem
tinha uma alimentação rica, equilibrada e perfeitamente adaptada às suas
condições de vida.
Eram imunes à tuberculose, cancros,
osteoporose, artroses, osteomalacia, que é uma doença que se manifesta pelo
enfraquecimento e desmineralização dos ossos por falta de vitamina D e só
raramente apresentavam cáries.
(Click na imagem do rio Tejo e da planície ribatejana vistas do Jardim das Portas do Sol nas muralhas do castelo)
(Click na imagem do rio Tejo e da planície ribatejana vistas do Jardim das Portas do Sol nas muralhas do castelo)
(No próximo Domingo continuaremos a
falar do nosso “avô” Cro- Magnon)
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