CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 196
E por aí foi. Ele fala, a gente ouve.
Gabriela ouvia. De quando em vez batiam palmas, ela também. Pensava no circo,
devia ter começado. Felizmente sempre atrasava, pelo menos meia hora. Ela fora
duas vezes ao Grande Circo Balcânico, com D.ª Arminda, antes do casamento.
Marcado para as oito horas, só se
iniciava depois das oito e meia. Olhava o grande relógio como um armário no
fundo da sala. Fazia um ruído alto, distraía. O Dr. Ezequi el
falava bonito, ela nem distinguia as palavras, era um som redondo, embalador,
dava sono.
Cortado pelo tiquetaque do relógio, os
ponteiros andando. Muitas palmas atrapalharam-lhe o cochilo; perguntou a Nacib,
animada:
-
Já acabou?
-
A apresentação. A conferência vai começar agora. O grandão de peito engomado
levantava-se, era aplaudido. Tirou do bolso um horror de papel, estendeu em
cima da mesa, alisou com a mão, pigarreou como o Dr. Ezequi el,
só que mais forte, bebeu um gole de água. Uma voz de trovão abalou a sala.
-
Gentis senhoritas, flores dos canteiros desse florido jardim de Ilhéus.
Virtuosas senhoras que saístes do recesso sagrado do vosso lar para ouvir-me e
aplaudir-me.
-
Ilustres senhores, vós que haveis construído à beira do Atlântico essa
civilização ilheense…
E por aí fora, parando para beber água,
pigarreando, limpando o suor com o lenço. Nunca mais ia acabar. Tudo cheio de
versos. Umas palavras trovejadas sobre a sala e a voz se adoçava, lá vinha
verso.
-
«Lágrima de mãe sobre o cadáver do filho pequenino chamado ao céu pelo
Todo-Poderoso, a lágrima mais sagrada» Ouvi: «Lágrima materna, lágrima…»
Com ele era mais difícil madornar. Ela ia fechando os olhos na
cadência do verso, desviando os olhos do relógio e o pensamento do circo e, de
repente, acabavam as estrofes, a voz clamava, Gabriela estremecia, perguntava a
Nacib:
-
Já vai acabar?
-
Psiu! – fazia ele.
-
Mas também ele sentia sono, Gabriela bem percebia. Apesar do ar atento, dos
olhos fitos no doutor conferencista, apesar da força que fazia, de quando em
vez, nos versos compridos, as pestanas de Nacib batiam, os olhos fechavam.
Acordava com as palmas, incorporava-se a
elas, comentava para a esposa do Dr. Demóstenes a seu lado:
-
Que talento!
Gabriela via o ponteiro dos relógios,
nove horas, nove e dez, nove e qui nze.
A primeira parte do circo devia estar próxima ao fim. Mesmo que tivesse
começado às oito e meia, às nove e meia terminaria. É verdade que existia o
intervalo, talvez ela chegasse a tempo de ver a segunda parte, onde Tuísca ia
representar. Só que esse doutor não terminava nunca mais.
O russo Jacob dormia em sua cadeira. O
Mister que sentara junto de uma porta, desaparecera há muito. Aqui não havia intervalo, era tudo de uma vez.
(Click na imagem de uma recordação das minhas férias em João Pessoa, o local mais oriental do Brasil e da América do Sul. Não esqueço as ostras fresquíssimas, apanhadas na noite anterior, que um "cara" trazia dentro de um balde e que vendia aos banhistas com sumo de limão... eram óptimas)
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