Das muralhas de Santarém. O Rio Tejo e a planície ribatejana . |
É DOMINGO
(Na minha cidade de Santarém)
PAIXÃO NO FIM-DE-SEMANA
Meteu a chave à porta do seu pequeno
apartamento e entrou com a felicidade estampada no rosto. Foi acendendo luzes,
todas quantas encontrou. Estava radiante, olhava à sua volta: os móveis, os
quadros na parede, a jarra e o centro de mesa, tudo lhe parecia novo e belo,
via tudo como se fosse a primeira vez. Apeteceu-lhe abrir os braços e dançar. Descerrou
a persiana, abriu a janela, inspirou o ar como se tivesse ganho um novo alento
para vida, o amor brilhava-lhe nos olhos.
Era uma tarde de sábado e ela demorou-se
um pouco mais na sua loja de computadores. A conversa continuou cá fora, no
passeio. Num assomo de coragem ele tinha-a convidado para almoçar no Domingo.
Ela olhou-o, com aqueles olhos que o fascinavam e esboçou um sorriso doce e um
olhar terno.
-
Porque não? - Respondeu-lhe, e o sorriso continuava a bailar-lhe nos lábios,
desafiante e prometedor. Combinou tudo, já nervoso, as pernas pareciam tremer e
as palavras saíam-lhe apressadas, sem ritmo, sem fluência, e ela continuava a
sorrir… um sorriso de aceitação. Despediu-se com um rápido aperto de mão.
Já tinha vinte e sete anos e sempre fora
menino de mamã que ficara viúva muito cedo e concentrara nele, filho único,
todo o amor, toda a posse de uma mãe que se agarra ao filho como algo que é seu,
tudo o que tem e não quer perder. Embora nova, não mais qui s
homens na sua vida, chegara ter visto partir um, o pai do seu filho.
Não sem custo, conseguira o
consentimento da mãe para alugar aquele pequeno apartamento beneficiando da
proximidade, no prédio quase vizinho, em frente, do outro lado da rua. A mãe
tratava de tudo só que aquele espaço era mais dele. No fundo, sentia a
necessidade de se emancipar, de ganhar vida própria mas percebia, também, que
com os anos ele próprio se tinha viciado na mãe e ela ocupara um espaço tão grande
que pouco ou nenhum sobrara para quem mais quer que fosse.
Aquela conversa, no fim da tarde de
sábado, no passeio à porta da sua loja de computadores, era bem a prova do
acanhamento, do seu pouco à vontade com raparigas que a mãe, com subtileza e
estratégia, sempre fora afastando da sua vida.
Agora, ali estava ele, pela primeira
vez, eufórico, senhor do mundo, apaixonado. Uma sensação estranha de leveza,
vontade de voar. Como era possível nunca ter sentido nada de parecido! O rosto
dela, o mais belo do mundo, aquele olhar provocador e o sorriso terno e
trocista toldavam-lhe o pensamento.
Já tarde, nessa noite, adormeceu cansado
de tantas emoções mas foi um sono irrequi eto,
em vez de reparador cansou-o ainda mais. Acordou, aguardando ansioso que a luz
da manhã entrasse no quarto e entretanto foi fazendo planos.
Levaria o seu fato azul, quase novo.
Depois de estreado não mais o vestira. Também...não tinha vida social, de casa
para o trabalho, dos clientes para a companhia da mãe. Poria aquela gravata
encarnada, nota de cor no seu guarda-fato que o provocava sempre que o abria
sem que ele tivesse coragem de a usar.
Reservado na maneira de ser, tímido até,
era discreto na maneira de vestir mas a mãe caprichava em que ele andasse
sempre apresentável, não fosse a vizinhança pensar mal dela.
Demorou-se na casa de banho. O que era
rotina feita á pressa em todos os outros dias, naquela manhã passou a acto
cerimonial e quando, finalmente, enfrentou o espelho para fazer o nó da gravata
encarnada já passava das dez horas.
Procurou a sua melhor água-de-colónia,
oferta da mãe pelo dia dos seus anos e que ainda permanecia na embalagem.
Exagerou, teve consciência disso, mas naquele dia ele queria impressionar.
Saiu à porta da rua, estacou, olhou ao
fundo onde estava o jardim que uma vez atravessado o levaria á marginal da mais
linda linha de costa da Europa, seu orgulho, a linha do Estoril.
A manhã, de um Outubro já adiantado,
estava enevoada e ele sentia-se estranho, eram momentos que ele vivia pela
primeira vez, empolgantes, em que a alegria da novidade se misturava com o
receio do desconhecido. Pela primeira vez estava a viver, a paixão acordara
nele todos os bocadinhos do seu ser até aí entregues a si próprios como se
esperassem aquele chamamento, aquele toque a reunir para dizerem presente.
Começou a andar, palmilhava o passeio
mal sentindo o contacto com as pedras do chão ordenadas e já polidas de tanto
calcorreadas.
Atravessou o jardim e a correr passou a
marginal. Do outro lado a praia, o mar e aquelas areias que ele conhecia desde
pequenino e onde sempre brincara. Nunca as tinha olhado como naquele momento.
Esperava que elas fossem as testemunhas mudas do encontro mais importante da
sua vida, na verdade, o único encontro.
Foi andando ao longo do murete que o
separava da praia, ainda era cedo, o restaurante ficava mesmo na marginal, mais
á frente. Sentou-se virado para o mar as pernas baloiçando sobre as areias.
Estendeu o olhar pela linha do horizonte
mas nada via porque o oceano misturava-se com as nuvens que tendo descido sobre
ele tardavam naquele dia em levantar-se.
Pensou na sua vida e percebeu que não
mais iria ser a mesma a partir de agora. Aquele sentimento de paixão nunca
vivido e que o dominava iria determinar o seu futuro, condicionar todas as suas
decisões. Não sabia se seria para bem ou para mal mas não lhe podia fugir.
Escolheu uma mesa a um canto da sala
virada para a entrada de modo a que pudesse vê-la quando chegasse. Apenas um
casal de turistas escolhia na ementa o que iria comer, todas as mesas restantes
estavam ainda desocupadas. Era cedo para um almoço de fim-de-semana mas as
pessoas foram chegando e a sala compôs-se. Ele bebericava um Martini informando
o empregado que aguardava a chegada de uma pessoa para fazer o pedido.
O tempo passava, não marcara hora porque
lhe parecera não ser de boa educação, dissera-lhe apenas que esperaria por ela
para almoçar. Afinal, não a conhecia mas sabia que as primeiras impressões
podiam marcar o futuro da relação. Ela também falava pouco, preferia ouvi-lo a
fazer as despesas da conversa mirando-o com os seus olhos escuros, algo
enigmáticos a condizerem com o cabelo de azeviche.
A sala foi-se esvaziando e ele,
assediado pelo empregado, pediu mais um Martini. Finalmente, levantou-se, pagou
e saíu.
O ar do mar refrescou-lhe o rosto, o dia
estava agora mais luminoso, as nuvens tinham-se levantado e ele começou a andar
num passo de sonâmbulo. No limite do passeio, os carros na direcção de Lisboa, iam
passando junto a ele.
Não conseguia alinhar nenhum pensamento,
algo no seu cérebro se tinha desligado segregando uma dose de morfina para que
ele não sofresse. Continuou a caminhar mas, de repente, parou abruptamente.
Fixou a vista num automóvel do lado oposto da estrada, encostado ao
passeio, com a luz dos piscas a trabalhar.
Estático, olhou atentamente. Ficou
rígido, reconheceu a rapariga por quem estivera esperando para almoçar fumando
despreocupadamente ao lado de outro homem.
Entrou na estrada, passo certo, a
direito, o olhar fixo no automóvel. Uma travagem a fundo, um carro continuando a
avançar, rodas imobilizadas, imparável no seu trajecto fatal. Um corpo
projectado, o som surdo do estatelar no meio do asfalto. Mais travagens por
todo o lado, confusão, carros parados, pessoas a correr e logo depois o barulho
ainda distante da sirene do INEM.
A rapariga sai do automóvel, aproxima-se
sem pressa, apreensiva. No chão, vê um jovem num impecável fato azul, gravata
encarnada e um cheiro a morte envolta em perfume de água-de-colónia de boa
qualidade.
Reconhece-o, deitado, corpo abandonado,
está aquele que deveria ter sido o seu companheiro de almoço. Chegam as
autoridades, mandam afastar, a médica debruça-se e aplica as técnicas de
sobrevivência, demora um tempinho, parece uma eternidade, para tentar segurar
uma vida. Descrente, manda recolher o corpo.
A
rapariga, que não se afastara muito, ainda julgou ouvir: “…está cadáver”.
A ambulância afasta-se rapidamente com o
som estridente da sirene, a polícia intervêm, apita e gesticula para os carros
circularem.
Na estrada da marginal, na linha de
Lisboa-Estoril, o trânsito foi restabelecido… tudo regressou à normalidade.
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