O
Rapaz do Trompete
A vida
é fugaz, um sopro, um suspiro, um abrir e fechar de olhos. Antes, o nada,
depois, o nada de novo. Entre os dois nadas, a vida. Debruço-me sobre ela,
braço esticado, revolvendo com os dedos da minha imaginação as recordações que por
lá existem. Puxei uma ao acaso, já amarelecida pela idade…há quantos anos!
Eu
teria para aí os meus dezanove, vinte anos, estudava então no Instituto
Superior de Estudos Ultramarinos, que em 1961 mudou para Instituto Superior de
Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) por causa dos novos ventos da
política internacional de então.
O meu pai alugara-me
um quartinho numa casa particular pertença de mãe e filha, viúvas, que para
sobreviverem arrendaram três quartos que milagrosamente conseguiram fazer
sobrar de um primeiro andar do velho prédio de azulejos azuis que dava para o
Jardim do Príncipe Real - tal como as magníficas portas do Palacete onde,
então, funcionava o meu Instituto.
Estávamos no primeiro ano da década de 60.
Em Janeiro, Henrique Galvão numa operação com o nome de código Dulcineia -
surripiou, em pleno alto-mar, o paquete Santa Maria para desespero de
Salazar que ficou possesso e regozijo da tímida oposição.
Lembro-me,
perfeitamente, de parar no passeio para
ver o cabeçalho do jornal “O Século” que relatava, com uma grande fotografia do
paquete, a notícia que tinha foros de escândalo nacional. Ri-me para dentro
como o cão Mutley. Estávamos no tempo em que até o apontar para além de feio
era perigoso.
Mas, quanto ao resto, tudo era calmo naquela
Lisboa pacífica e provinciana, e o meio estudantil universitário ainda tinha
que aguardar uns anos pelos ventos agitados de Maio de 68.
Nunca mais regressei ao “meu” Jardim do Príncipe Real onde, nas horas de lazer, me deliciava com as leituras do Pitigrilli e nas de aperto para os exames media forças com a sebenta de Princípios Gerais de Direito para tentar perceber aquelas vinte e tal páginas em que o Prof. Adriano Moreira explicava as diferenças entre Direito Público e Privado.
Essa explicação seria, anos mais tarde, feita por Freitas do
Amaral, muito melhor e com um terço das
páginas...
Para além disto, era o retrato rotineiro dos jardins de Lisboa, com os magalas a namoriscarem as sopeiras, o fulano que vendia a banha da cobra e que, estacionado no passeio, desertava sobre as maravilhas do produto que fazia bem a tudo e tinha a ver com uma cobra que toda a gente esperava ver quando ele abrisse a mala que estava no chão, a seus pés, e que afinal só guardava os frascos da poção mágica que começavam a ser vendidos quando a conversa já não dava para esticar mais e o pessoal à sua volta ameaçava desertar.
Para além disto, era o retrato rotineiro dos jardins de Lisboa, com os magalas a namoriscarem as sopeiras, o fulano que vendia a banha da cobra e que, estacionado no passeio, desertava sobre as maravilhas do produto que fazia bem a tudo e tinha a ver com uma cobra que toda a gente esperava ver quando ele abrisse a mala que estava no chão, a seus pés, e que afinal só guardava os frascos da poção mágica que começavam a ser vendidos quando a conversa já não dava para esticar mais e o pessoal à sua volta ameaçava desertar.
E havia também um sujeito que parava muito
por ali, com aspecto de chuleco, ares de galã dos “pampas”, morenaço, calças justas, botas à vaqueiro
e andar à Yul Brynner, e ao que diziam as más-línguas, trepava na mulher do Mister Cork, da Casa das Cortiças, ali ao lado, que tinha tanto de gordo e mesureiro a despedir-se dos clientes ingleses, como a mulher,
muito mais nova que ele, tinha de “boa”.
Finalmente, havia a minha vizinha da cave e
como último personagem desta história de memórias, o malfadado rapaz do
trompete. Ela, era uma jovem linda como os amores, o seu rosto, o de uma boneca
que me deixava fascinado como o passarinho se hipnotiza pelo olhar da serpente.
Não a
podia ver à janela pois a cave, onde morava, por baixo de mim, apenas dava para um pequeno e esconso saguão, mas
sempre que nos cruzávamos à saída ou entrada do prédio era um encantamento para
mim. Segui-a com o olhar e perguntava-me como é que uma rapariga tão linda
podia sair daquela cave escura, húmida e mal cheirosa em vez de um palácio a
que a sua beleza lhe dava direito?
Eu era um aluno universitário, coisa rara
naquele tempo, ela uma pobre rapariga que nem a 4ªclasse teria e, no entanto, os
meus olhos enchiam-se com a sua figura e eu, tímido, sentia-me como um barco à deriva aguardando a
orientação de um olhar seu que nunca veio.
Jamais trocámos palavra, nem um simples
bom-dia, mas ela era, definitivamente, a eleita do meu coração, a musa
inspiradora dos meus sonhos…até que um dia despertei para a realidade ao som de
um estridente, agudo e desafinado trompete desesperadamente soprado por um não
menos desafinado músico… era o namorado.
Maldito, não só se tinha apropriado da minha secreta namoradinha como, ainda por cima, fazia-se anunciar junto dela com aquele maldito trompete!
Que desperdício, junto de uma rapariga tão linda tocava-me trompete… raios o partam, como eu o invejei!
PS:
A
esta distância, as paixões da juventude, tal como as cartas de amor de Fernando
Pessoa, parecem-nos ridículas. Em boa verdade, aos 19 anos estava descomandado
e ter-me-ia apaixonado perdidamente por qualquer linda jovem que ousasse levantar
certos olhares para mim.
O que eu não sabia e vim a perceber mais tarde, é que me limitava a cumprir
instruções da “mãe natureza” que em código cifrado no meu ADN, exigia que transmitisse os
meus genes à fêmea mais bonita da minha tribo para que os meus filhos também
nascessem lindos e tivessem, por isso, mais oportunidades de continuarem os
meus genes pelas gerações seguintes. A beleza, entre nós, representa um trunfo
para a procriação, as contas bancárias viriam mais tarde...
Já
lá dizia Vinícius de Morais, “… que me perdoem as feias mas eu prefiro as
lindas…" E é assim, simples coisas da biologia transformadas em lindos romances
de amor, pois não me consta que a Dulcineia do D. Quixote ou a Julieta do
Romeu, fossem vesgas ou tivessem borbulhas na testa…
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