Rei Fundador (VI)
- Esse que vós dizeis que tendes nunca
mais porá os pés neste claustro. Agora, se não me quereis dar um,
desaparecei-me da vista que eu me encarrego de fazê-lo.
Desvaneceram-se os cónegos nas sombras
do claustro, mais fugitivos uns que outros. Entretanto viu D. Afonso Henriques
avançar para ele um negro de sotaina.
-
Pst, pst, olha cá, és clérigo? Como te chamas?
-
Çuleima.
Sabes celebrar os ofícios? Lês o
latinório?
-
Como água. Não há dois em Espanha que me vençam…
-
Pois serás Bispo, D. Çuleima. Vai-te paramentar para me dizeres missa!...
-
Falta-me a coroa, senhor, isto é, ordens de presbítero…
-
Eu dou-tas. Eu te ordeno padre, e pois que padre estás, eu te ordeno bispo. Agora
anda-me depressinha se não queres que te arranque a pele. De hoje em diante, és
o prelado desta diocese.
E assim foi. Encolhidos como láparos que
sentem o podengo, os frades, cónegos e mais eclesiásticos seculares dobraram a
cerviz ao jugo do preto, produto híbrido mosárabe, provavelmente.
Há que estranhar? Não há. Naqueles
tempos, do homem leigo ao ordinando não havia mais que um escalão. Subia-se com
um pé. Não era precisa nenhuma preparação especial. Bastava a ciência infundida
por Deus. Se cortava letra redonda, então improvisava-se um padre, um
arcipreste, um príncipe da Igreja em três tempos. Çuleima, pois, não significa
nenhum atentado à lógica e muito menos ao bom senso.
Quando em Roma se soube do expediente
fantástico de D. Afonso Henriques, rompeu um coro de invectivas: - Que bárbaro!
Que hereje! Que alarve!
Despacharam-lhe um cardeal, entendido na
catequese, com imunidades de legado e
grande plenipotenciário, a ensinar ao ignorantão os artigos fundamentais da fé
cristã. Junto com a cartilha levava o temeroso azorrague do interdito.
Soube-se em Coimbra da missão evangélica
do cardeal-legado, porquanto vinha pela corte dos reis cristãos e notícias
destas correm como o vento. Foram dizê-lo a D. Afonso Henriques.
-
Senhor, por toda a parte onde passa, dá beija-mão e enchem-no de honras…
-
Que venha. O que fiz, fiz. Não me arrependo. Lá quanto a eu beijar-lhe a mão em
minha casa, seja ele cardeal ou papa, que tente, e nem Deus nem Santa Maria o
livram de apanhar uma espadeirada que lhe corto o braço pelo cotovelo.
Advertido das intenções de el-rei quando
chegou a Coimbra, e tanto mais que ele não viera recebê-lo, o cardeal-legado
cobrou grande susto.
Recalcando suas apreensões, dirigiu-se a
Alcáçova onde o rei pousava.
-
Então a que vindes, cardeal amigo? Trazeis-me dinheiro para custear a guerra
que, noite e dia, ando há tantos anos ando a fazer aos mouros? Se trazeis,
desatai a bolsa, se não tratai de rodar e volver por onde viestes.
-
Venho de mando do Santo Padre ensinar-vos a fé de Cristo…
-
Ensinar-me a mim a fé de Cristo…? Então o Credo que cá se usa não é o mesmo que
em Roma? Ouvide lá…
E D. Afonso Henriques recitou-lhe
tim-tim por tim-tim o símbolo dos apóstolos tal como vigorava por toda a cristandade.
(continua)
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