sábado, dezembro 08, 2012


AFONSO HENRIQUES
Rei Fundador (VI)



- Esse que vós dizeis que tendes nunca mais porá os pés neste claustro. Agora, se não me quereis dar um, desaparecei-me da vista que eu me encarrego de fazê-lo.

Desvaneceram-se os cónegos nas sombras do claustro, mais fugitivos uns que outros. Entretanto viu D. Afonso Henriques avançar para ele um negro de sotaina.

 - Pst, pst, olha cá, és clérigo? Como te chamas?

 - Çuleima.

Sabes celebrar os ofícios? Lês o latinório?

 - Como água. Não há dois em Espanha que me vençam…

 - Pois serás Bispo, D. Çuleima. Vai-te paramentar para me dizeres missa!...

 - Falta-me a coroa, senhor, isto é, ordens de presbítero…

 - Eu dou-tas. Eu te ordeno padre, e pois que padre estás, eu te ordeno bispo. Agora anda-me depressinha se não queres que te arranque a pele. De hoje em diante, és o prelado desta diocese.

E assim foi. Encolhidos como láparos que sentem o podengo, os frades, cónegos e mais eclesiásticos seculares dobraram a cerviz ao jugo do preto, produto híbrido mosárabe, provavelmente.

Há que estranhar? Não há. Naqueles tempos, do homem leigo ao ordinando não havia mais que um escalão. Subia-se com um pé. Não era precisa nenhuma preparação especial. Bastava a ciência infundida por Deus. Se cortava letra redonda, então improvisava-se um padre, um arcipreste, um príncipe da Igreja em três tempos. Çuleima, pois, não significa nenhum atentado à lógica e muito menos ao bom senso.

Quando em Roma se soube do expediente fantástico de D. Afonso Henriques, rompeu um coro de invectivas: - Que bárbaro! Que hereje! Que alarve!

Despacharam-lhe um cardeal, entendido na catequese, com imunidades de  legado e grande plenipotenciário, a ensinar ao ignorantão os artigos fundamentais da fé cristã. Junto com a cartilha levava o temeroso azorrague do interdito.

Soube-se em Coimbra da missão evangélica do cardeal-legado, porquanto vinha pela corte dos reis cristãos e notícias destas correm como o vento. Foram dizê-lo a D. Afonso Henriques.

 - Senhor, por toda a parte onde passa, dá beija-mão e enchem-no de honras…

 - Que venha. O que fiz, fiz. Não me arrependo. Lá quanto a eu beijar-lhe a mão em minha casa, seja ele cardeal ou papa, que tente, e nem Deus nem Santa Maria o livram de apanhar uma espadeirada que lhe corto o braço pelo cotovelo.

Advertido das intenções de el-rei quando chegou a Coimbra, e tanto mais que ele não viera recebê-lo, o cardeal-legado cobrou grande susto.

Recalcando suas apreensões, dirigiu-se a Alcáçova onde o rei pousava.

 - Então a que vindes, cardeal amigo? Trazeis-me dinheiro para custear a guerra que, noite e dia, ando há tantos anos ando a fazer aos mouros? Se trazeis, desatai a bolsa, se não tratai de rodar e volver por onde viestes.

 - Venho de mando do Santo Padre ensinar-vos a fé de Cristo…

 - Ensinar-me a mim a fé de Cristo…? Então o Credo que cá se usa não é o mesmo que em Roma? Ouvide lá…

E D. Afonso Henriques recitou-lhe tim-tim por tim-tim o símbolo dos apóstolos tal como vigorava por toda a cristandade.
(continua)

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