HOJE É DOMINGO
(Na minha cidade de Santarém)
Quantas vidas tem uma vida?
Por estes dias, centenas, milhares de concidadãos
meus estão começando uma nova vida, infelizmente a pior que eles poderiam
esperar: desempregados, esgotado que foi o subsídio de desemprego, a vida que
até aí tinha sido, para a maior parte deles, uma rotina agradável, de labuta,
mas agradável, transformou-se, por artes malignas, num drama, numa tragédia.
Quando, em fins de 1962, embarquei no
Vera Cruz para a Guerra de Angola: - «Depressa e em Força», dissera Salazar,
uma vida nova começou para mim e milhares de jovens como eu, sendo que, para
alguns, foi a última…
Quando, no fim dos meus primeiros cinco
anos, a minha mãe me cortou os caracóis para eu poder ir para a escola sem
parecer o Luís XIV em ponto pequenino, terminou a minha primeira vida. Dizia
eu: - «Mamã, e quando eu era menina?…»
Quando desembarquei no avião em Lourenço Marque
para iniciar uma nova vida com outra mulher que não a mãe dos meus filhos,
outra vida se me deparou.
Quando, anos mais tarde, cheguei a
Lisboa, de regresso, sem casa, sem emprego, sem carro, sem roupa, outra vida me
esperava amparado pela família e mais tarde pelo Quadro Geral de Adidos.
Entre estas vidas, outras aconteceram ao
sabor dos caprichos da própria vida e sempre aquelas que ficaram para trás me
pareceram acidentes: agora, sim, naquela que se seguia, é que iria ser a vida a
sério, finalmente a minha última vida… não foi.
Os anos passam, envelhecemos, e sempre
esta sequência de vidas que, afinal, são a própria vida.
Mas eu não posso dissociar a minha vida,
da vida do meu país. Passei a fazer parte dele quando nasci. As nossas vidas, a
dele e a minha, fundiram-se, então, com a diferença que a minha, qualquer dia,
ficará por aqui e a dele continuará.
Sinto-me cidadão do mundo porque
partilho conceitos importantes e formas de viver que são comuns a uma grande
parte dele, mas o grande compromisso é com o meu país.
É por ele que choro e me alegro, me
entristeço e desespero.
Foi por ele que lutei, numa guerra
injusta, estúpida, a mando de um homem de vistas curtas, mas lutei … e agora
sofro porque me custa assistir à vergonha e humilhação porque ele está a passar
e ele, sou eu, o meu vizinho de cima, os do prédio ao lado, do meu bairro, da
minha cidade de todas as cidades para cá da fronteira e em todos os lugares,
fora dela, onde vive um compatriota meu.
-
O que fizemos? O que nos fizeram? O que permitimos que nos fizessem?
De que nos serviram os quase novecentos anos
de história se não conseguimos aprender com os erros que fizemos e os repetimos
como se tivéssemos chegado agora e este mundo?
Não é só a pobreza que me assusta, a
incerteza do dia de amanhã, é também a dignidade que nos roubam, a forma com
que nos tratam, a maneira como põem e dispõem, dizem e desdizem a nosso
respeito.
Nunca sofri por o meu país ser pequeno e
pobre porque o futuro dele estava na nossa mão e o capital de esperança é a
maior riqueza que podemos ter. Metemos as mãos nos bolsos vazios e sonhamos que
um dia os vamos ter cheios…
O pior, é quando deixamos fugir o futuro
para mãos alheias e o capital de esperança que ele encerra vai-se com ele, e os
sonhos morrem, esvaem-se… a que nos agarramos então?
Apenas o sol com os seus raios
brilhantes e dourados continuam a encher-nos de luz e o mar, sempre,
teimosamente o mesmo mar, a beijar as nossas praias transmitindo-nos alento na
espuma branca das suas ondas.
O meu país está enfermo, não ponderámos
como devíamos, sábia e cautelosamente, as decisões que tomámos. O mundo é um
enorme covil de lobos e alguns de nós próprios, dentro da nossa casa, também não
se comportaram bem…e, infelizmente, nem sequer somos capazes de os punir.
A falência da nossa justiça deixa-me a
boca amordaçada. Como gritar contra os prevaricadores se eles se passeiam entre
nós com o desdém, descaramento e desplante de quem, impunemente, nos conseguiu
enganar?
Que outra vida será esta que se anuncia
a uma comunidade que perdeu as rédeas do seu futuro e continua a gritar pela
manutenção dos seus direitos?
De hoje em diante e nos próximos anos, a vida no meu país deverá ser um exercício de teimosia que
corre atrás dos nossos sonhos pela recuperação das rédeas do futuro.
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