Relacionou-se com os vizinhos.... |
O PAÍS
DO
CARNAVAL
Episódio Nº 71
Recordava-o como um mito,
um ser excepcional que tortura e se impõe. Ticiano, que o torturara, que
lançara a dúvida no seu espírito, dominara-o com a força da sua bizarria, de
seu todo esqui sito de céptico e
demolidor.
Jerónimo Soares voltou a
sentir entusiasmo quando passavam pelas ruas, garbosos, soldados a cantar um
chamado hino nacional.
Começou novamente a achar
graça nas coisas comuns da vida. Relacionou-se com os vizinhos. Discutia
política com o Sr, Brederodes Antunes da Encarnação, que opinava pelo regresso
do país ao regime constitucional.
Cumprimentava sorridente a
velhota da esqui na que fazia doces
para vender na cidade. Tornou-se o modelar funcionário público do antigamente,
de antes de conhecer Pedro Ticiano.
Era a escalada da
Felicidade.
E, além do mais, tinha
Conceição. A antiga prostituta, muito carinhosa, enchia-lhe a vida. Amava-o
como sabem amar as mulheres que venderam o seu corpo a multidões de homens.
Essas mulheres são as requi ntadas no amor. As mestras do carinho. Conceição
adivinhava-lhe os desejos. Dava-lhe essas felicidades quotidianas que os homens
equi librados conseguem e outros
tantos procuram.
À noite deitava a cabeça
de Jerónimo nos seus joelhos e ficava horas perdidas a alisar-lhe o cabelo
mestiço. Ficavam silenciosos, voluptuosos da felicidade.
Ele já não tinha dias de
mau humor. O mesmo, sempre. A mesma bondade grande. O mesmo sorriso confiante
de quem se livrou da insatisfação.
Ruth, a mulher de Ricardo,
é que falava certo. Tudo aqui lo,
todo aquele negócio de insatisfação, era literatura…
Hoje, como ele dava razão
a Ruth! Literatura, tudo…
Entretanto, ele sentia
ainda que lhe faltava alguma coisa. A sua felicidade, apesar de grande, não
podia ser chamada de absoluta. Ressentia-se de algo. Jerónimo não sabia o que
fosse.
E por vezes, raras vezes é
verdade, passava-lhe pela cabeça aqui lo,
perturbando-o. Faltava-lhe alguma coisa…
Na repartição, onde agora
assinava o ponto todo o dia, largava a pena e matutava. Amor, tinha. Ganhava
bem. Boa comida, boa cama. Que precisava?
Seria o diabo da
insatisfação que o perseguia? Então seriam verdades as blagues e os paradoxos
de Pedro Ticiano?
- Não. Esse negócio de
insatisfação e de dúvidas é para Paulo e José Lopes. Comigo, não. Eu sou um
burguês feliz. Nada de intelectualismos… Mas que diabo me faz falta?
O companheiro de banca
despertava-o:
- Eh, mano! Está no mundo da lua?
- Não. Estou pensando cá umas coisas…
- Pensando? Você é poeta, rapaz?
- Qual! Deus me livre…
À noite também cismava.
Enquanto não chegasse a completa felicidade não descansaria. E quase que se
infelicita criando um problema.
Nessa época Jerónimo
Soares não desejava, não carregava aspirações. O querer ser o chefe da sua
secção não chegava a ser uma ambição…
<< Home