Episódio Nº 96
Pareciam pessoas que
oravam. E aquele trabalho dava uma dor nas costas, dor fina e prolongada que
ficava pela noite adentro, magoando.
Zéqui nha
passava olhando o serviço, dando ordens, brigando. Montes de folhas de fumo se
juntavam e, quando a tarde vinha, as mãos dos homens haviam ganho dez tostões
que eles não viam, porque já deviam ao patrão quantias desconhecidas.
Com as mãos calosas e
feias acenavam adeuses aos trens que passavam apitando.
Na casa de taipa moravam
quatro: Ricardo, o negro. Filomeno, António Balduíno e o Gordo. Filomeno só
falava em tiros e mortos, isso quando falava, porque geralmente estava calado,
ouvindo.
Ricardo tinha em cima das
tábuas em que dormia, colado na parede, o retrato de uma actriz de cinema toda
nua com um leque apenas cobrindo o sexo.
Havia pregado o retrato na
parede com muito cuidado, retrato que dera o filho do patrão, há uns três anos,
quando viera à fazenda. E colocava o fifó de tal jeito que a luz vermelha dava
bem em cima da actriz que aparecia nua como um convite.
O gordo tinha um santo em
cima da cama, santo que trocara por qui nhentos
réis nas festas do Bonfim. António Balduíno juntava nos pés do girau - espécie
rudimentar de cama – a figa que Jubiabá lhe dera e os punhais que trazia no
cinto. O negro Filomeno não tinha nada.
Vinham para o terreiro
após o jantar e eles que não tinham cinema, nem teatro, nem cabarés, tocavam
violão e cantavam ao desafio.
As mãos brutas dos homens
negros tiravam das cordas sonoridades que enchiam de alegria e de tristeza os
camponeses todos das plantações de fumo.
Cantavam cantigas tristes,
sambas alegres, e no desafio Ricardo era perito. As suas mãos corriam pelas
cordas do violão e não eram mais aquelas mãos calosas da enxada e da terra.
Eram mãos de artistas, rápidas
e certas, que levavam ao coração dos homens a história de amores e lutas. As mãos
que antes davam o pão, davam agora a alegria na terra sem mulheres.
Os violões repenicavam
noite afora e era o cinema, o teatro, o cabaré. As mãos rápidas corriam pelas
cordas e a música se espalhava entre as plantações de fumo que, à luz da lua,
apresentavam aspectos estranhos.
Quando o silêncio baixava
sobre tudo, quando não se ouvia mais o som das violas e os homens já estavam
estirados nos giraus, o fifó apagado, Ricardo olhava o retrato da actriz nua
com um leque cobrindo o sexo.
Estava com os olhos fitos
nela e eis que ela se move. Porém agora está vestida e eles não estão mais nas
plantações de fumo. Estão na grande cidade, numa cidade que Ricardo nunca viu,
cidade iluminada, cheia de automóveis e de avenidas, maior que cachoeira e São Félix
reunidas.
Deve ser a Baía e talvez
seja até o Rio de Janeiro. Passam mulheres loiras, mulheres morenas e toas
sorriem para Ricardo que está elegante, vestido de casimira, com uns sapatos
vermelhos como os que ele vira numa loja em Sant’Ana.
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