Episódio Nº 101
O rosto de Arminda é
risonho. Mesmo quando ela está chorando, como agora, tem um rosto alegre. Por
que há pessoas assim? O rosto da defunta está verde e cheio de bagas de suor.
Está pegajoso, António
Balduíno esfrega as mãos uma na outra, querendo livrar-se da visão. Espia para
o teto. Mas sente que os olhares da morta estão fitos nele. Ficou muito tempo
espiando as traves e as telhas pretas.
De repente baixou a vista
e olhou os seios de Arminda. Sorriu satisfeito: tapeou a velha morta. Mas foi
pior, muito pior: ela ficou com a boca torcida de raiva, esbugalhou ainda mais
os olhos.
Tem uma mosca pousada na
sua boca. Parece uma ponta de cigarro, preta da saliva. António Balduíno tenta
acompanhar as orações. E quando pensa que a morta não está mais olhando para
ele, abre a boca para pedir água a Arminda.
Mas lá estão os olhos da
defunta bem postos em cima dos seus, num ar de desafio. Reza de novo, bebe
cachaça. Quantas vezes já terá passado por ele a garrafa? Essa está no
finzinho.
Quantas terão ainda que
abrir? Numa sentinela se gasta muita cachaça… Agora que a morta não está
espiando, António Balduíno se levanta devagarinho, circunda a mesa onde está o
cadáver, toca no ombro de Arminda:
- Venha me dar um gole de água.
Ela se levanta. Vão para o
qui ntal no fundo, onde está uma tina
de água e um caneco. Arminda se curvou para encher o caneco e pelo decote do
vestido António Balduíno vê os seios.
Então segurou nos braços
da menina e girou com ela que ficou de frente para ele, olhando-o espantada. Mas
não vê nada a não ser aquela boca e aqueles seios que estão na sua frente.
Vai a apertar o braço e a
sua boca se dirige para a boca de Arminda, que ainda não compreende, quando os
olhos da defunta chegam e se colocam entre os dois.
A velha Laura deixou o seu
lugar em cima da mesa e se meteu entre eles. Ela está tomando conta da filha.
Os mortos sabem tudo e ela sabia o que António Balduíno pretendia fazer.
Está ali entre os dois
olhando o negro. Ele solta Arminda, põe as mãos nos olhos, derruba o caneco com
água e entra na sala como um cego. A morta inchou ainda mais na mesa.
O negro Filomeno ri como
quem compreendeu a ideia de António Balduíno ao pedir água. Ele vai fazer o
mesmo com certeza. Que besta - pensa António
Balduíno – ele está julgando que vai levar alguma vantagem.
Quando chegar lá encontra
a finada espiando para ele. A finada sabe de tudo, ela adivinha tudo…
Porém os olhos da morta não
acompanharam Filomeno. Será que ela vai deixar aquele negro imundo tocar em
Arminda?
Ele se levantou e pediu
água a Arminda e a morta não fez nada. António Balduíno murmura para o rosto
impassível.
- Vá! Vá! Não está vendo aqui lo? Não está vendo? Aquele negro é malvado…
Mas a morta não atende ao
aviso. Parece até que ela está rindo. Ouve-se um ruído lá dentro. Arminda volta
para a sala e agora chora um choro diferente. O vestido está amachucado no
lugar dos seios. O negro Filomeno está sorrindo.
António Balduíno torce as
mãos com raiva, levanta e diz alto para o Gordo:
- Você não disse que ela é uma menina de doze
anos? Cadê? Cadê a morta que não fez nada…
Zéqui nha
diz:
- Tá bêbedo…
Alguém cerra os olhos da
morta.
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