(17/11/2013)
(Na minha cidade de
Santarém)
Esqueçamos, por este Hoje é Domingo, a
situação actual do meu país. Voltaremos a ele porque é impossível não regressar
da mesma maneira que é difícil não lamber insistentemente a ferida que nos
corrói o corpo como linitivo para as dores.
Faço
hoje um apelo à memória dos amigos da minha geração que acompanham o Hoje é
Domingo e que tiveram alguma experiência de vida em Portugal antes da revolução
dos Cravos de 1974 e no Brasil, no tempo do regime ditatorial, da censura, das
perseguições políticas e fugas para o estrangeiro.
No Brasil, esse período ficou conhecido pelo
regime dos coronéis que terminou em 1984 quando, após a eleição do Presidente
Tancredo, eles foram caindo todos um a um, por força do voto nas urnas.
Entre nós, o mesmo regime teve um rosto, uma cabeça, um homem: Salazar.
Caetano,
que se lhe seguiu, bom professor de Direito, acabou vítima da Revolução dos
Cravos e foi morrer, exilado, exactamente ao Brasil.
Faltou-lhe coragem e convicção política para
dar um novo rumo ao país mas quem executava no terreno essa política eram os
censores, espécie de eminências pardas, fiéis zeladores do cumprimento do
pensamento do chefe e da defesa do regime que desabou em Portugal, com estrondo
mas miraculosamente sem tiros, em Abril de 1974.
Na frente, como guarda - avançadas, estavam os PIDES (Polícia de Investigação e
Defesa do Estado) armados de uma autoridade que não conhecia a lei,
prepotentes. Eles eram a própria lei mesmo quando actuavam contra ela…
Conheci pessoalmente um desses senhores no princípio da década de setenta, em
Moçambique, onde desempenhava funções como Delegado da Inspecção de Crédito e
Seguros.
Ele era Inspector da PIDE no Distrito tendo uma categoria, como funcionário
público, que deveria ser idêntica à minha como Delegado da Inspecção de Crédito
e Seguros.
Nas colónias - Províncias Ultramarinas como eram então oficialmente designadas
para disfarçar… - estes homens não tinham a carga odiosa dos
seus pares em Portugal continental porque ali o contexto social era outro.
Ali, o inimigo, eram os “terroristas”. Os colonos brancos, quase todos afectos
ao regime cuja política defendia intransigentemente a presença deles e dos seus
interesses em África, não ofereciam perigo.
Os agentes da Pide, e muito mais um senhor Inspector, era um aliado, um amigo,
pessoa respeitada e considerada cuja presença era indispensável nas recepções
sociais de carácter particular onde, de resto, o conheci e me foi apresentado.
Era um homem de físico cheio, bem constituído, que se apresentava com
sobranceria mal disfarçada, olhando as pessoas de cima para baixo, arrogante, que
ninguém contrariava e cujas opiniões eram ouvidas em silêncio aprovador.
Foi o primeiro e último Pide que me foi dado conhecer em toda a minha vida que
não foi de lutador anti-fascista.
Tanto eu como ele tínhamos chegado há pouco tempo à cidade da Beira. Eu vindo
da metrópole, ele de uma outra província a norte da Beira, Quelimane, e recordo
vagamente que da curta conversa havida ficou-me uma sensação de antipatia e, da
parte dele, provavelmente, de desconfiança.
Os nossos Serviços cruzavam-se relativamente a dinheiro estrangeiro que fosse
apanhado a circular ilegalmente e que tinha de ser entregue na minha Delegação
para o fazer chegar ao Banco de Moçambique.
A única moeda que podia circular no território
eram escudos moçambicanos a que, depreciativamente, os colonos chamavam
“dinheiro macaco”.
Sendo assim, qualquer pessoa que necessitasse de se deslocar para fora de
Moçambique, por negócios, doença ou férias, tinha que se dirigir ao Banco de
Moçambique munido de uma Autorização de Transferência que era concedida pelos
meus Serviços, nas condições e montantes estipulados pela lei, para trocar os
escudos moçambicanos (o tal “dinheiro macaco”) por escudos portugueses ou outra
divisa pretendida, ao cambio oficial muito inferior ao do mercado negro.
Relativamente a cidadãos que tivessem familiares a seu cargo nos países de
origem, quase sempre portugueses, eram autorizados a transferir mensalmente a
favor desses familiares, quantias cujos máximos estavam fixados na lei.
Os meus Serviços emitiam uma Autorização, renovável a cada seis meses a pedido
do interessado que posteriormente era apresentada no Banco para as respectivas
transferências.
Peço desculpa por descer a estes pormenores mas só a partir deles poderei
contar a história do Sr. Inspector da PIDE.
A mente dos polícias
da PIDE, especialmente daqueles que já tinham atingido a categoria de Inspectores,
portanto com “provas dadas e vocação comprovada”, como o da nossa história, era
qualquer coisa que talvez os especialistas do foro psíqui co
pudessem considerar como possuídos por “um transtorno mental”: ao mesmo tempo
perverso, redutor, simplista, defensor de uma verdade que lhes foi impingida
mas que assimilaram como indiscutível de tal forma que na qualidade de seus
guardiões o ego disparava.
O mundo para eles era estreito e
irreal, o quadro de valores definia-se apenas pela fidelidade ao regime e o ódio
aos comunistas, e quando a Revolução aconteceu, em 1974, esse mundo desabou.
Apavorados, ficaram
sem perceber nada do que tinha acontecido. De espírito covarde como eram,
alimentados por uma autoridade e força que não era deles, ficaram vazios.
Fugir, esconder, foi a única reacção.
O “nosso” Inspector, que vivia, como
eu, na cidade da Beira com a mulher e duas filhas, aproveitando-se da lei a que
já fiz referência, transferia mensalmente para Portugal uma pensão (de valor
máximo) para três familiares (pais e sogro, presumo) que declarou estarem a seu
cargo.
A Autorização para fazer essa
transferência através do Banco de Moçambique, com a duração de seis meses,
tinha-lhe sido concedida pela Delegação de Quelimane, cidade onde ele exercera
funções antes de ser transferido para a Beira (sinal de promoção…)
Quando ali chegou, e embora a
Autorização de Transferência que estava na sua posse fosse ainda válida por
mais três meses, requereu de imediato uma nova Autorização de Transferência.
Os meus Serviços indeferiram o pedido
com o argumento óbvio de que “ele estava na posse de uma Autorização que lhe
tinha sido concedida pela Delegação de Quelimane cuja validade só terminaria
dentro de três meses devendo, então, pedir a sua renovação por um novo período
de seis meses”.
Isto mesmo lhe foi comunicado num
ofício que eu próprio assinei na qualidade de Delegado da Inspecção e que caiu
em cima da secretária dele como uma autêntica”bomba”.
Que afronta, que ousadia, que
temeridade, que falta de respeito!... dizer “não” ao senhor todo-poderoso Inspector da
PIDE?
A raiva, a ira, a incredulidade,
deixaram-no possesso, o sangue invadiu-lhe o rosto, os gestos desabridos…
Pega imediatamente no telefone e quando me ouve
do outro lado da linha, a sua voz em altos berros dispara em todas as
direcções. Na rua, as pessoas ouvem com algum temor e param curiosas.
Os seus funcionários devem ter-se escondido debaixo das secretárias e eu afastei o telefone do ouvido para proteger o tímpano.
Fiquei em silêncio, não disse uma
palavra, apenas recordo algumas ameaças… “que ia participar de mim”, “que me
embrulhava numa folha de papel de 25 linhas”… e de mais não me lembro porque
deixei de o ouvir por ter desligado o telefone.
À minha frente, um utente do Serviço
que estava a atender, fitava-me com perplexidade sem saber o que pensar. Quando
pousei o auscultador, olhei-o e disse-lhe: “desculpe, isto são ossos do
ofício”.
Só uma mente completamente destorcida
podia ter um comportamento assim. Em que mundo este senhor vivia?
Como era possível reagir daquela
maneira a uma decisão de Serviços da Administração Pública que era obviamente
legal para além de que fazia todo o sentido?
Não perceberia ele que
atender o seu pedido teria sido uma evidente irregularidade, uma infracção da
lei?
Perguntei a mim próprio, muitas
vezes, porque reagiu aquele homem daquela maneira e naqueles termos e a
resposta só podia ser uma:
- No exercício de uma autoridade
arbitrária baseada na violência, no desrespeito total pelos direitos e
dignidade dos seus concidadãos dos quais só aceitava a obediência e o temor,
perseguido por todos os fantasmas que habitavam o seu espírito, aquele homem
vivia no limiar da demência.
Os
tempos passaram. Nada mais aconteceu depois daquele surrealista telefonema até
que um dia, sem se fazer anunciar, como era hábito daquela gente, dei por mim,
quando levantei a cabeça, com o senhor Inspector à minha frente no meu gabinete
de trabalho.
Uma das prerrogativas daqueles “defensores do regime” era, querendo, o de
entrarem na casa das pessoas, nos locais de trabalho, em qualquer lado, sem
avisarem.
Como
polícias muito especiais que eram, o factor surpresa, fora de qualquer processo
de averiguação ou de Autorização Judicial que o permitisse, constituía uma
espécie de “marca” identificadora da sua autoridade e poder.
Com ar altivo, o peito cheio, não se sentou. Olhava-me de pé, de cima para
baixo, em sinal de superioridade e de dominação… “estou aqui
para lhe mostrar que não estou zangado. Aqui
tem – e acompanhou as palavras com os gestos – dinheiro estrangeiro que foi
apreendido para fazer entrega dele no Banco de Moçambique” disse, enquanto
colocava em cima da minha secretária um maço de notas, e saiu com o seu
avantajado corpanzil numa retirada de estilo, sempre para impressionar…
Os meses continuaram a passar e desembocaram na Revolução do 25 de Abril em
Portugal, com cravos distribuídos no Rossio, coração de Lisboa, que os soldados
enfiaram nos canos das espingardas em imagens que correram mundo, numa extrema
humilhação para os Srs. Inspectores da PIDE, zelosos defensores do regime.
Nem sequer tiveram oportunidade de mostrar a valentia e a coragem de que se
fizeram portadores durante tantos anos… Acabaram presos, perseguidos, muitos
acossados como bichos pela população, mãos nas paredes, pernas abertas, calças
arriadas, cuecas à mostra… era a hora do "reviralho"!
Eram umas dez da manhã quando a notícia me chegou, hora histórica para mim e
para todos os portugueses aquela em que souberam da Revolução.
A
vida de todos ia dar uma cambalhota, o curso ia mudar e muito mais a vida dos
portugueses que viviam nas colónias.
Fui até à Praça do Município onde era enorme o entusiasmo. Faziam-se discursos,
davam-se gritos à liberdade, muito provavelmente por elementos de um núcleo
contrário ao regime de Salazar/Caetano que vivia clandestinamente na cidade.
Encostei-me a uma coluna e observei o ambiente de alegria e de vitória que se
vivia na Praça e pensei, lembro-me bem de o ter pensado, que muitas daquelas
pessoas, para não dizer todas, não tinham razões para estar alegres…
Era apenas o momento de euforia a que alguns
que esperaram tantos anos tinham direito. Aquela, no entanto, não era a terra
deles, era o local errado, o equívoco ia finalmente desfazer-se e o parto de um
novo país iria ser para todos muito doloroso…
Samora Machel disse: - “Portugal não nos deu a independência, nós é que ganhámos
a guerra!”
Esta era a mensagem que ia ao encontro do orgulho dos moçambicanos mas que escondia uma outra, implícita, lógica e perigosa: os portugueses, colonialistas ou não, eram considerados “despojos de guerra”, restava-lhes abandonar o território.
Esta era a mensagem que ia ao encontro do orgulho dos moçambicanos mas que escondia uma outra, implícita, lógica e perigosa: os portugueses, colonialistas ou não, eram considerados “despojos de guerra”, restava-lhes abandonar o território.
Para os moçambicanos ficou um país vazio de actividade económica, palco para
uma futura guerra civil também conhecida como a guerra dos Dezasseis Anos entre
o exército de Moçambique (Frelimo) e a Renamo…
Na tarde desse dia, o telefone tocou. Era um amigo meu dos tempos de estudante,
pessoa de confiança do regime, que superintendia numa empresa de um grupo
económico importante naquela região e que
trabalhava no edifício contíguo ao meu.
Pelo
grau de confiança e amizade que havia entre nós pedia-me que fizesse um favor
ao Sr. Inspector que estava ali ao pé dele, em desespero, porque precisava com
rapidez de uma Autorização de Transferência de dinheiro para mandar para
Portugal a mulher e as filhas.
- “Diz ao Sr. Inspector que eu trabalho exactamente no mesmo local que ele
conhece e se pretende alguma coisa de mim só tem que vir até cá. Não precisa de
te incomodar…”
Passados poucos minutos, o senhor que tinha sido até ao dia anterior o
todo-poderoso Inspector da PIDE da cidade da Beira, entrava no meu gabinete,
cabeça baixa, peito para dentro e ali ficou até eu o mandar sentar, em
silêncio, incapaz de me olhar nos olhos, não fosse qualquer gesto ou palavra
desagradar-me… era a segurança da família que estava em causa e ele não podia
correr riscos.
- “Sr. Inspector - disse-lhe – se me viesse fazer este pedido há dois dias
atrás indicar-lhe ia os balcões para preencher o impresso e
aguardar que a Autorização corresse os seus trâmites até estar despachada para
lhe ser entregue.
Mas o senhor, neste momento, é um homem destroçado, pior, acossado, a atravessar o pior momento da sua vida. É uma pessoa frágil e eu vou levar isso em consideração e atender de imediato o seu pedido, não tanto por si, mas porque a família é o que temos de mais precioso.”
Mas o senhor, neste momento, é um homem destroçado, pior, acossado, a atravessar o pior momento da sua vida. É uma pessoa frágil e eu vou levar isso em consideração e atender de imediato o seu pedido, não tanto por si, mas porque a família é o que temos de mais precioso.”
Chamei uma funcionária e dentro de minutos ele abandonava a Delegação com a Autorização
pretendida sem que eu me lembre de ter ouvido um obrigado… mas talvez o tenha
dito… baixinho. Também,
já passaram tantos anos… uma vida!
No outro dia viajou para Lourenço Marques, hoje Maputo, preso, como todos os
Pides que exerciam funções em Moçambique.
Numa contra-revolução, em 7 de Setembro de 1974, tentativa frustrada de
interromper o processo de independência em curso e reconduzir novamente o poder
aos brancos numa solução tipo Ian Smith, como na vizinha Rodésia, fugiram da
cadeia e refugiaram-se na África do Sul de onde muitos se exilaram para o
Brasil porque Portugal, naquela altura, não era também para eles uma terra
recomendável…
Depois, com os anos, tudo acabou por esquecer… o tempo tudo apaga… os
acontecimentos seguiram o seu rumo de forma inexorável.
Portugal “digeriu”, como por encanto, mais de meio
milhão de retornados regressados à “trouxa-mouxe” ao ponto de partida e que,
paradoxalmente, acabaram por ser um motor de desenvolvimento para um país
adormecido pela guerra e a ditadura.
Só eu não consegui apagar da minha memória esta figura bizarra do Sr. Inspector
da PIDE que se cruzou comigo nos anos de 1972 a 74 na cidade da Beira em Moçambique, mas
ele constituiu para mim o exemplo provado, pela negativa, que são as questões de
carácter que nos marcam nas relações uns com os outros e determinam os afectos
ou desafectos.
Aquele
senhor Inspector da PIDE não tinha formação ética ou moral, em vez de amado era
temido, faltaram-lhe os princípios, os valores ou, muito provavelmente, tudo
estava confuso e baralhado na sua cabeça demente.
Quando
assim é, quando se chicoteiam pessoas para lhes arrancar informações que sirvam
um pretenso valor da defesa da pátria, então, melhor fora que não houvesse
pátria.
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