Era realmente Joaquim Soares da Cunha quem descansava no caixão... |
A MORTE
E A MORTE
DE QUINCAS
BERRO
DÁGUA
Episódio Nº 10
Tio Eduardo tinha voltado para o armazém, não podia abandoná-lo só com os empregados, uns cal hordas. Tia Marocas prometera vir mais tarde para o velório, precisava de passar em casa, deixara tudo ao deus-dará na pressa de saber novidades.
Leonardo, a conselho da própria Vanda,
aproveitaria a tarde sem Repartição para ir à companhia imobiliária, ultimar o
negócio de um terreno a prazo que estavam comprando. Um dia, se Deus ajudasse,
teriam a sua casa própria.
Haviam estabelecido uma espécie de
turnos de revezamento. Vanda e Marocas pela tarde, Leonardo e tio Eduardo pela
noite.
A Ladeira do Tabuão não era lugar onde
uma senhora pudesse ser vista à noite, ladeira de má fama, povoada de malandros
e mulheres-da-vida.
Na manhã seguinte toda a família se
reuniria para o enterro.
Foi assim que Vanda, à tarde, se
encontrou a sós com o cadáver do pai. Os ruídos de uma vida pobre e intensa,
desenvolvendo-se pela ladeira, mal chegavam ao terceiro andar do cortiço onde o
morto repousava após a canseira da mudança de roupa.
Os homens da empresa funerária haviam
feito um bom trabalho, eram competentes e treinados. Como disse o santeiro, ao
passar um instante para ver como as coisas se apresentavam, “nem parecia o
mesmo morto”.
Penteado, barbeado, vestido de negro,
camisa alva e gravata, sapatos lustrosos, era realmente Joaqui m Soares da Cunha quem descansava no caixão
funerário – um caixão régio (constatou satisfeita Vanda), de alças douradas,
com uns babados nas bordas.
Haviam improvisado com tábuas e tripés
de madeira uma espécie de mesa e nela elevava-se o esqui fe,
nobre e sereno.
Duas velas enormes – círios de
altar-mor, orgulhou-se Vanda – lançavam uma chama débil, pois a luz da Baía
entrava pela janela e enchia o quarto de claridade. Tanta luz do sol, tanta
alegre claridade, pareceram a Vanda uma desconsideração para a morte, faziam as
velas inúteis, tiravam-lhes o brilho augusto.
Por um momento pensou em apagá-las,
medida de economia, mas como certamente a empresa cobraria a mesma coisa
gastassem duas ou dez velas, decidiu fechar a janela e a penumbra fez-se no
quarto, saltaram as chamas bentas como línguas de fogo.
Vanda sentou-se numa cadeira (empréstimo
do santeiro), sentia-se satisfeita. Não a simples satisfação do dever final
cumprido, algo mais profundo.
Um suspiro de satisfação escapou-lhe do
peito. Ajeitou os cabelos castanhos com as mãos, era como se houvesse
finalmente domado Quincas, como se lhe houvesse de novo posto as rédeas,
aquelas que ele arrancara um dia das mãos fortes de Octacília, rindo-lhe na
cara.
A sombra de um sorriso aflorou nos
lábios de Vanda, que seriam belos e desejáveis não fosse certa rígida dureza a
marcá-los.
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