quinta-feira, janeiro 02, 2014

OS VELHOS MARINHEIROS

 
A Morte e a Morte

de Quincas Berro Dágua


Episódio Nº 1



Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas.

Não há clareza sobre a hora, local e frase derradeira. A família apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Baía.

Presenciada, no entanto, por testemunhas idóneas, largamente falada na ladeira e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca, representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor do nosso tempo).

Tantas testemunhas idóneas, entre as quais Mestre Manuel e Quitéria do Olho Arregalado, mulher de uma só palavra, e, apesar disso, há quem negue toda e qualquer autenticidade não só à admirada frase mas a todos os acontecimentos daquela noite memorável, quando, em hora duvidosa e em condições discutíveis, Quincas Berro Dágua mergulhou no mar da Baía e viajou para sempre, para nunca mais voltar.

Assim é o mundo, povoado de cépticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado.

Exibem eles, vitoriosamente, o atestado de óbito assinado pelo médico quase ao meio – dia e com esse simples papel – só porque contem letras impressas e estampilhas – tentam apagar as horas intensamente vividas por Quincas Berro Dágua até à sua partida, por livre e espontânea vontade, como declarou em alto e bom som, aos amigos e outras pessoas presentes.

A família do morto – sua respeitável filha e seu formalizado genro, funcionário público de promissora carreira; tia Marocas e seu irmão mais moço, comerciante com modesto crédito num banco – afirma não passar toda a história de grossa intrujice, invenção de bêbedos inveterados, patifes à margem da lei e da sociedade, velhacos cuja paisagem devia ser as grades da cadeia e não a liberdade das ruas, o porto da Baía, as praias de areia branca, a noite imensa.

Cometendo uma injustiça, atribuem a esses amigos de Quincas toda a responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos anos, quando se tornara desgosto e vergonha para a família. A ponto do seu nome não ser pronunciado e seus feitos não serem comentados na presença inocente das crianças, para as quais o avô Joaquim, de saudosa memória, morrera há muito, decentemente, cercado da estima e do respeito de todos.

O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, senão física pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores – a partir do atestado de óbito até seu mergulho no mar – uma farsa montada por ele com o intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua.



Não era ele homem de respeito e de conveniência, apesar do respeito dedicado por esses parceiros de jogo a jogador de tão invejada sorte, a bebedor de cachaça tão longa e conversada.

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