Vocês não têm vergonha de disputar a mulher dele... |
A MORTE
E A MORTE
DE QUINCAS
BERRO
DÁGUA
Episódio Nº 26
Não lhes parecia fácil. Negro Pastinha
conhecia Oxalá, mais longe não ia sua cultura
religiosa. Pé-de-Vento não rezava há uns trinta anos. Cabo Martim considerava
preces e igrejas como fraquezas pouco condizentes com a vida militar.
Ainda
assim tentaram, Curió puxando a reza, os outros respondendo como melhor podiam.
Finalmente Curió (que se havia posto de joelhos e baixara a cabeça contrita)
irritou-se:
– Cambada de burros...
– Falta de treino... – disse o Cabo. –
Mas já foi alguma coisa. O resto o padre faz amanhã.
Quincas parecia indiferente à reza,
devia estar com calor, metido naquelas roupas quentes. Negro Pastinha examinou
o amigo, precisavam fazer alguma coisa por ele já que a oração não dera certo.
Talvez cantar um ponto de candomblé? Alguma coisa deviam fazer. Disse a
Pé-de-Vento:
– Cadê o sapo? Dá pra ele...
– Sapo, não. Jia. Agora, pra que lhe
serve?
– Talvez ele goste.
Pé-de-Vento tomou delicadamente a jia,
colocou-a nas mãos cruzadas de Quincas. O animal saltou, escondeu-se no fundo
do caixão. Quando a luz oscilante das velas batia no seu corpo, fulgurações
verdes percorriam o cadáver.
Entre cabo Martim e Curió recomeçou a
discussão sobre Quitéria do Olho Arregalado. Com a bebida, Curió ficava mais
combativo, elevava a voz em defesa dos seus interesses. Negro Pastinha
reclamou:
– Vocês não têm vergonha de disputar a
mulher dele na vista dele? Ele ainda quente e vocês que nem urubu em carniça?
– Ele é que pode decidir... – disse
Pé-de-Vento. Tinha esperanças de ser escolhido por Quincas para herdar
Quitéria, seu único bem. Não lhe trouxera uma jia verde, a mais bela de quantas
já caçara?
– Hum! – fez o defunto.
– Tá vendo? Ele não está gostando dessa
conversa – zangou-se o negro.
– Vamos dar um gole a ele também... –
propôs o Cabo, desejoso das boas graças do morto.
Abriram-lhe a boca, derramaram a
cachaça. Espalhou-se um pouco pela gola do paletó e o peito da camisa.
– Também nunca vi ninguém beber
deitado...
– É melhor sentar ele. Assim pode ver a
gente direito.
Sentaram Quincas no caixão, a cabeça
movia-se para um e outro lado. Com o gole de cachaça ampliara-se seu sorriso.
– Bom paletó... – cabo Martim examinou a
fazenda. – Besteira botar roupa nova em defunto. Morreu ,
acabou, vai pra baixo da terra. Roupa nova pra verme comer, e tanta gente por
aí precisando...
Palavras cheias de verdade, pensaram.
Deram mais um gole a Quincas, o morto balançou a cabeça, era homem capaz de dar
razão a quem a possuía, estava evidentemente de acordo com as considerações de
Martim.
– Ele está é estragando a roupa.
– É melhor tirar o paletó pra não
esculhambar.
Quincas pareceu aliviado quando lhe
retiraram o paletó negro e pesado, quentíssimo. Mas, como continuava a cuspir a
cachaça, tiraram-lhe também a camisa. Curió namorava os sapatos lustrosos, os
seus estavam em
pandarecos. Pra que morto quer sapato novo, não é, Quincas?
– Dão direitinho nos meus pés.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home