A Memória Colectiva
A
Memória Colectiva esboça-se pouco tempo após o aparecimento do Homo Sapiens,
sob uma forma que, provavelmente, começou por ser passageira: arranjos
geométricos de calhaus, pedras e paus
colocados no solo ou sinais efémeros traçados na areia.
Mais tarde, adqui re
um carácter de maior perenidade quando é elaborada uma proto-escrita
constituída por entalhes feitos num suporte de madeira ou de osso, sequência de
nós formados numa tira de couro ou de uma fibra vegetal que funcionavam mais
como elementos auxiliares de memória.
Mas na mesma época, aparecem já
desenhos figurativos mais eficazes na medida em que aqui lo
que exprimem pode dispensar comentários sendo verdadeiros veículos de
informação capazes de transmitir conceitos.
Estão neste caso, para além das
estatuetas e dos desenhos gravados em osso ou marfim, os célebres frescos das
abóbadas e das paredes das grutas que representam mensagens do Homem de
Cro-Magnon muito embora existam riscos de erros sobre a finalidade real da
imagem transmitida através do tempo.
Há cerca de 6.000 produziu-se um
tremendo salto qualitativo quanto ao armazenamento de informações quando
passamos da proto-escrita sintética (um único desenho evocava uma frase inteira
ou um grupo de frases) para uma escrita analítica, a verdadeira.
Foi na Suméria, na Mesopotâmia
Meridional, num local de grandes templos, nas cidades de Uruk e Lagash que
foram encontrados placas de argila com pictogramas gravados que permitem seguir
a evolução da escrita dos Sumérios.
O pictograma não tem em vista a
representação de uma frase completa mas apenas de um conceito específico que
corresponde a uma palavra.
As gravuras mais antigas são desenhos
simplificados em que cada um deles remete para um objecto, animal ou uma parte
do corpo humano.
Esta escrita utilizava mais de 1.500
pictogramas o que seria difícil de memorizar e, por esta razão, desapareceu há
mais de 5.000 anos tendo sido substituída por sinais abstractos desprovidos de
qualquer semelhança seja com o que for.
É a escrita Cuneiforme composta por
600 sinais diferentes e nasceu dos escribas sumérios que desenhavam os
pictogramas primitivos recorrendo a canas afiadas em bico, “calamos” com que
desenhavam a argila mole que era posta a secar ao sol ou em fornos.
Mais tarde, os escribas por
comodidade habituaram-se a cortar os calamos em bisel e em vez de desenharem
limitavam-se a cravar as extremidades biseladas na argila, formando deste modo
marcas angulosas cuja disposição codificada era parecida com os antigos
pictogramas e como as marcas faziam lembrar a forma dos pregos que em latim se
denominam “cuneus” foi chamada a esta escrita de “cuneiforme”.
O sinal esquemático deixa muito
rapidamente de representar uma palavra completa mas apenas o símbolo de uma só
parte da palavra ou seja um “fonograma” que representa um fonema (ou uma
sílaba).
As placas sumérias serviam então,
fundamentalmente, para inventariar cereais, cabeças de gado, escravos e
permitia ter em dia a contabilidade das poderosas comunidades religiosas e dar
instruções precisas aos responsáveis administrativos e militares.
A escrita cuneiforme é uma ferramenta
de gestão e de comunicação de valor inestimável e rapidamente se espalha por
todo o Médio Oriente e é neste tipo de escrita que são redigidos o Código de Hamurabi,
rei da Babilónia e a “Epopeia de Gilgamesh” que foi encontrada em Ninive, na
biblioteca do rei assírio Assurbanípal.
O Egipto faraónico inventa há cerca
de 5.000 anos um sistema que lhe é próprio, a escrita hieroglífica, formada por
conjuntos particulares de pictogramas, os hieróglifos, (de hieros, que
significa sagrados, e gluphein que quer dizer gravar).
A escrita pictográfica egípcia
primitiva utilizava cerca de 700 sinais diferentes, número que aumentará
posteriormente ao mesmo tempo em que se tornava fonética ou silábica e os
mesmos hieróglifos tanto eram usados como pictogramas como fonogramas, o que
tornava também obrigatório o uso de sinais determinantes.
Um pouco antes, a China dota-se de
uma escrita muito particular.
Os pictogramas da língua chinesa são
desenhados ou, melhor, são caligrafados a pincel em suportes muito diferentes,
mas essencialmente, em rolos de seda.
Muito estilizados, eles sugerem mais
do que descrevem os objectos ou as palavras e tornam-se “ideogramas”.
Este sistema, que será
verdadeiramente codificado há 3.500 anos não passa à fase fonética e permanece
na fase ideográfica (um conceito -uma palavra – um sinal) pelo que tem de
utilizar vários milhares de ideogramas diferentes, com um conjunto de 200
sinais determinantes que permitem tornar o sentido daqueles mais claros.
Os letrados clássicos da China dos
Tang (618 – 907) tinham de saber 431.286 sinais diferentes!
Temos, portanto, que a escrita
começou por ser global e sintética, tornando-se de seguida pictográfica ou
ideográfica, depois fonética ou silábica e finalmente alfabética.
O alfabeto é composto por um conjunto
de sinais escritos convencionais em que cada um corresponde a um único som
falado.
Estes sinais de número limitado são
susceptíveis de serem dispostos segundo combinações permutáveis de modo a
formarem as várias sílabas e as diferentes palavras.
Esta escrita alfabética parece ter
sido inventada há cerca de 3.400 anos em Ugarit, na Síria, um porto comercial à
data muito importante mas dois séculos mais tarde a cidade foi destruída por um
exército inimigo, e foram os Fenícios, povo de comerciantes e marinheiros, que
dois séculos depois divulgaram por todo o Mediterrâneo um outro alfabeto que
compreendia 22 caracteres, apenas consoantes. Nas línguas semíticas, são as
consoantes que dão o sentido enquanto que as vogais são pouco utilizadas e só
têm como papel clarificar a função gramatical da palavra.
Este alfabeto foi aperfeiçoado pelos
gregos que o completaram introduzindo 5 vogais suplementares há pouco menos de
3.000 anos.
E assim, em relativamente pouco
tempo, a humanidade dotou-se de uma memória colectiva escrita e poderá agora
perguntar-se qual a soma de informações que ela representa.
Os arqui vos
centrais da cidade-estado de Ebla, com mais de 3.000 anos, actualmente Tell
Mardikh no Djeziré, na Síria, armazenam placas de argila que têm gravado
pictogramas cuneiformes e representam uma capacidade de armazenagem de 10
elevado a 8 Bits.
Bits é a simplificação para dígito
binário e é a mais pequena unidade de medida de transmissão de dados usada na
Computação e na teoria da Informação embora hoje já sejam feitas pesqui sas em Computação Quântica ,
os Cubits.
Um Bit tem um valor único, 0 ou 1, ou
então, verdadeiro ou falso e é armazenado como uma carga eléctrica dentro de um
dispositivo denominado Memória.
Hoje em dia, para além da
electricidade utilizam-se também as fibras ópticas, ondas electromagnéticas e
ainda por via da polarização magnética nos chamados Discos Rígidos.
Depois dos arqui vos
centrais de Ebla e mais perto de nós, 2.300 anos, temos os 400.000 rolos de
papiro que eram a glória da grande biblioteca de Alexandria que constituíam uma
memória próxima dos 10 elevados a 10 bits.
O recheio desta extraordinária
biblioteca foi mandada queimar em 640 pelo califa Omar que teria explicado o
seu gesto do seguinte modo:
- “Quanto aos livros, ou eles dizem a mesma coisa que o Alcorão e
são inúteis ou dizem outra coisa e são falsos ou perigosos…”
(Um pensamento destes
só pode ser proporcionado por uma religião em que, um tirano, se socorre de um
deus para se impor aos seus e prejudicar toda a humanidade… Temos tido mais
casos destes, não à escala de uma Biblioteca – que era a mais importante do
mundo antigo – mas sobre muitos outros escritos. Outras vezes, os tiranos, nem
precisam de invocar um deus qualquer, basta-lhes uma ideologia… a sua, já se
vê.)
Finalmente com a Imprensa, a Memória
Colectiva volta a progredir muito consideravelmente e no final do século XX o
depósito de informações contido em livros, numa Grande Biblioteca imaginária,
excluindo jornais e revistas, contando 200 a 300 páginas por livro e 2.000 caracteres
por página, chega-se a 10 elevado 14 bits.
É evidente que toda esta prodigiosa
capacidade de armazenamento de memória colectiva tem um interesse relativo na
medida em que 6.000 anos depois da sua invenção, um ser humano adulto em cada
dois ignora a escrita e mesmo aqueles que a dominam têm uma capacidade muito
limitada para explorar na totalidade a memória escrita da humanidade quando, só
para se passar um jornal de ponta a ponta, se levam quatro horas e meia.
A rádio e a televisão dão uma ajuda
tornando acessíveis a um maior número de pessoas, a troco de um menor esforço,
os dados da memória colectiva mas, mesmo neste caso, é preciso dedicar-lhes
muito tempo com o inconveniente de que a escolha dessa memória escapa ao livre
arbítrio do “consumidor”.
Parecia, portanto, que se tinha
atingido outro limite tanto mais difícil de ultrapassar quanto era certo
resultar de uma incompatibilidade funcional entre as memórias individuais, por
um lado, e a memória colectiva, por outro.
Foi então que apareceu a “telemática”
que aperfeiçoou novos suportes: memórias ópticas, magnéticas ou electrónicas.
Tal como os neurónios do sistema
nervoso central, os suportes modernos da memória colectiva permitem armazenar e
tratar as informações colocando, de imediato, ao alcance da selecção individual
a totalidade do saber da colectividade.
Em termos de armazenamento chegou-se
a um ponto tal em que é possível, devido a um efeito físico especial, (plasma
de electrões) armazenar um bilião de informações (10 elevado a 12 bits) num
volume equi valente a …um pequeno
grão de sal!
O segundo problema é o da exploração
dos dados e aqui intervém o
computador que restitui ao homem a informação desejada nas melhores condições
de rapidez e eficácia.
McLuhan, filósofo e educador
canadense, já falecido, que trouxe para o nosso dialecto a conhecida expressão “aldeia global” profetizava que com
os novos meios de comunicação “o conjunto da humanidade está destinado
a formar uma única e imensa audiência, a reconstituir a noção de sociedade
tribal e a viver numa aldeia planetária”.
Claude Lévy-Strauss também comunga na ideia de que no século XXI
só haverá uma única cultura, uma única humanidade mas chama a atenção para as
clivagens verticais, entre os que têm tudo e os que têm nada e, sobretudo, para
as clivagens horizontais entre gerações com valores desfasados…
Então, qual é a continuação lógica
para a evolução do Homo Sapiens Sapiens?
- Uma nova espécie nascida de um
fenómeno catastrófico imprevisível?
- Uma tribo de “Homo communians”
funcionando à maneira de um organismo pluricelular?
- Ou um “Homo” muito simplesmente
“Sapiens” que resolveria ser um pouco menos sapiente…mas um pouco mais sábio?
O Neolítico surgiu como a idade de
ouro para o género humano que descobre o seu poder sobre a natureza, vive
melhor e durante mais tempo conhecendo a humanidade um espectacular crescimento
demográfico mas as realizações que caracterizam este período de desenvolvimento
provocam, igualmente, efeitos perversos.
O progresso produz o caos e a desorganização, aqui lo a que se chama de entropia, sempre em busca de
novos desequi líbrios e o excedente
de energia que desta maneira se gera paga-se à custa de desorganizações
sucessivas, do meio natural por um lado, da sociedade dos homens por outro.
A aqui sição
de novos bens e o desenvolvimento da vida urbana contribuem para desfazer a
profunda solidariedade que reinava dentro da tribo.
O género humano, que sentia
intuitivamente a sua homogeneidade genética, descobre as suas diferenças e
inventa hierarqui as.
A escrita, que permite constituir e
conservar uma memória colectiva representa, sem dúvida, um imenso progresso mas
esta maravilhosa ferramenta de comunicação não é neutra e contribui para
modificar mais uma vez o comportamento dos homens.
Dando origem à
palavra, o alfabeto lançou o género humano num universo analítico e abstracto.
Influenciado por esta nova maneira de ver o mundo e de comunicar com os seus
semelhantes o Homo Sapiens Sapiens começa a ter de si uma percepção enquanto
indivíduo. A tribo, fora da qual a vida do homem do paleolítico não
fazia sentido explode, desintegra-se.
A dialéctica do “Dono e do Escravo”
nasceu da civilização agrária e da escravatura.
Será possível imaginar que no novo
contexto da civilização mediática moderna, se possa desenvolver uma civilização
planetária em que o “Homo Communicans” reencontre o sentido da tribo?
P.S.
Este texto foi produzido com apoio na
obra “A Origem do Homem”, de Claude Louis Gallien, Prof. Catedrático na
Universidade René Descartes onde dirige o Laboratório de Biologia do
Desenvolvimento e cuja leitura recomendo vivamente.
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