sexta-feira, fevereiro 28, 2014

Era a personalidade mais importante do subúrbio...
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 17










Dizem ter sido assim construída a fortuna do Meritíssimo e não herdada de pais ricos. Herança mesmo, fora a esposa quem recebera e não teria ele casado com dona Ernestina por outro motivo, pois ainda adolescente já era ela um saco de banhas, conhecida pelo apelido de “Zepelim”.

Não se reduzem a escavar o passado, futucam no presente e trazem à baila a terna Dondoca. Como se fosse crime um homem ilustre procurar um terno refúgio para as suas lucubrações intelectuais nas tardes paradas de Periperi.

 Dona Ernestina ronca a sesta, aproveita-se o Meritíssimo para entregar-se à fantasia e ao doce enlevo do amor. Confidenciou-me ele, cumulando-me de honra com sua confiança, nutrir pela rapariga um sentimento protector, quase paternal. Uma pobre enganada e abandonada, cheia de boas qualidades, cujo destino seria a repugnante profissão do meretrício se um braço amigo não a sustivesse e amparasse.

 Ao demais, ele bem merecia o direito àquelas pequenas contrafacções da rígida moral, a compensarem as suas obrigações matrimoniais, “penosas e pesadas”.

Penosas e pesadas, dona Ernestina com seus cento e vinte quilos, imagino bem. Não pude deixar de representar-me a cena evocada nos adjectivos lastimosos do juiz: aquelas banhas nuas, libertadas de cintas e corpetes, a rolarem no leito... Devia custar realmente pena e esforço ao Meritíssimo.

Contive o sorriso, não é justo brincar com essas coisas quando nelas estão envolvidas personalidades dignas de respeito, como o Dr. Siqueira e sua esposa, gorda porém honrada. E, no que se refere a Dondoca, que outro sentimento pode despertar-me o magistrado, além da gratidão?

Não fora seu generoso pecadilho e não poderia eu desfrutar gratuitamente, usando uns óptimos chinelos ali deixados pelo juiz, comendo chocolate por ele trazido, das graças da mulata mais linda e mais fogosa da Baia.

 Mas a natureza do homem é mesmo salafrária: não é que, estendido com Dondoca em cama paga pelo juiz, comendo confeitos e frutas comprados por ele, ouvindo a safadinha contar certas particularidades gozadas do seu protector, não consigo impedir-me de imaginar o Meritíssimo a praticá-las no Zepelim, suando e arfando, em sua penosa obrigação . . .

Não posso, em sã consciência, criticar os tipos que vivem a assacar futricas contra o saber e a honra do Meritíssimo. Se eu próprio, seu devedor de tantas obrigações e gentilezas, rio e debocho de suas pequenas fraquezas, se o faz Dondoca, sua protegida, como esperar dos demais atitude respeitosa e justa?

De qualquer maneira, esse tal de Telémaco Dórea não me atravessa na garganta, sujeitinho pernóstico e suficiente. Andei a lhe mostrar trechos da história do comandante, resultado de paciente pesquisa, de difícil labor. Fez-me o poetastro uma série de críticas: estilo frouxo e impreciso, acção lenta e débil, lugares-comuns em quantidade, personagens sem vida interior.

Uma frase da qual, confesso, me orgulho, uma que ficou aí para trás, “contra ele se levantam, em vagalhões de infâmia, os oceanos da calúnia”, mereceu a sardónica reprovação e um riso de mofa do tal Dórea, incapaz de sentir a força e a beleza da imagem.

Enquanto isso, a mesma frase obteve os maiores louvores do ilustre e culto mestre do Direito, homem acostumado aos bons autores, leitor de Rui Barbosa e de Alexandre Dumas.

 Também Dondoca, quando li o trecho em voz alta, mais para mim mesmo que para ela, bateu palmas e exclamou: “bonito!”. Não lhe falta sensibilidade como, aliás, eu já o comprovara na cama. Assim, apoiado pela elite intelectual, representada pelo magistrado, e aplaudido pelo povo, através da voz doce de Dondoca, dou o desprezo mais absoluto ao riso alvar de Telémaco Dórea, poeta lá para as negras dele, e evitarei, de agora em diante sua desinteressante companhia.

 Além de tudo trata-se de um facadista, ainda está me devendo cento e oitenta cruzeiros que me pediu no verão passado para comprar peixe. “De tarde lhe devolvo”, e até hoje.

E volto à história do comandante, pois quando teci os comentários iniciais sobre a inveja não estava pensando no juiz, em sua honrada esposa, em Dondoca, no cabotino do Dórea.

Entrou o juiz apenas para servir de exemplo e foi ficando, como certas visitas massadoras, sem noção do tempo. Creio ter-me perdido também um pouco, a discutir com o pulha do Dórea, a espreguiçar-me no leito de Dondoca, nos seus braços dengosos.

Esquecendo-me do compromisso assumido: esclarecer a embrulhada história do comandante, fazer brilhar a verdade, nua e completa, sobre suas aventuras.

Ninguém, como se vê, escapa aos invejosos: como iria escapar o Comandante Vasco Moscoso de Aragão que, com um mês apenas de residência em Periperi, já era a personalidade mais importante do subúrbio, o nome mais falado, glória do lugar, opinando sobre os mais diversos assuntos?

 Opinião respeitada, jurava-se por ele. “O comandante disse . . .”  “pergunte ao comandante . ..”, “o comandante me garantiu. . .”, ouvia-se nas discussões e quando ele, retirando da boca o cachimbo de espuma-do-mar, ditava seu aviso, era a última palavra indiscutível.

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