sexta-feira, fevereiro 21, 2014

Vê-se que quando moça foi uma bela mulher...

OS VELHOS

MARINHEIROS


Episódio Nº 11








De como a sensual bailarina Soraia e o rude marinheiro Giovanni participaram do velório e do enterro da velha Doninha Barata


- Nem mesmo a morte - aliás, aguardada há meses - de Doninha Barata, viúva de Astrogildo - Barata, aposentado das Águas e Esgotos, conseguiu abrir um hiato no interesse despertado pela chegada e instalação do comandante. Como se já não lhes sobrasse tanto tempo para o medo.

Exteriormente nada mudara, velório e enterro obedeceram ao mesmo cerimonial, apareceram vagos parentes da cidade, veio o Padre Justo, de Plataforma, encomendar o corpo, as mulheres despovoaram de flores seus jardins, os velhos calçaram sapatos e puseram gravatas para o funeral.

No entanto, houvera uma subtil e indelével diferença, como se a presença da morte não se fizesse sentir tão brutalmente, como se ela houvesse demorado menos tempo entre eles. Porque quando a morte, de longe em longe, passava por Periperi, não ia logo embora, apenas concluía sua macabra tarefa.

Ficava por ali, mesmo depois do enterro, sua sombra gélida estendida sobre os aposentados e retirados dos negócios, sobre suas curvadas esposas, e os corações se apertavam como se a garra da morte os comprimisse, a experimentá-los.

Perdia a brisa sua leve carícia, eles sentiam nas costas dobradas pelo medo o hálito fúnebre espalhado pela morte; por quem viria ela em sua próxima visita?

Não, não era a mesma coisa a presença da morte lá na cidade da Baía, rápida e banal nas rodas de um automóvel, nos leitos dos hospitais, nas páginas de desastres e crimes dos jornais.

Era leviana e secundária, por vezes não merecia mais de duas linhas nas gazetas, desaparecendo em meio a tanta vida a cercá-la, a tanto ruído e luta, não havia lugar para ela nos corações apressados, dissolvia-se sua sombra nas luzes, e os risos não deixavam ouvir seu murmúrio.

Seu podre bafo, como iriam senti-lo as mulheres envoltas em perfume, em cálidas vagas de desejo? Passava a morte despercebida, apenas executava sua tarefa e já desaparecia, não havia tempo a perder com ela em meio a tanta ânsia e pressa de viver.

“Fulano morreu”, anunciava-se, nos jornais, nos rádios, nas conversas, “coitado!”, “pobre dele!”, “já foi tarde”, “era tão moço ainda. . .”, e não se falava mais nisso, havia muito assunto a comentar, muito riso a rir, muita ambição a satisfazer, muita vida a viver.

Em Periperi era diferente: não era vida feita de trabalho e luta, de ambição e dificuldades de amor e ódio, de esperança e desespero, a que ali viviam ou vegetavam. Ali o tempo se alongava nada o apressava, os acontecimentos duravam acontecendo.

E o mais longo de todos era a morte, jamais banal e rápida, sempre fulgurante e demorada, apagando, com sua chegada, todas as aparências de vida do lugar. Não já começavam eles a morrer, os aposentados e retirados dos negócios, quando ali desembarcavam, trazidos pelo desejo de viver o maior tempo possível, de prolongar os anos, longe da agitação e dos desejos? 

Era uma população de velhos sem outro real interesse senão a própria vida, e a morte de um deles matava um pouco a todos, ficavam cabisbaixos e melancólicos.

As partidas de dama e de gamão rareavam, alguns deixavam mesmo de sair de casa, agravavam-se as mazelas de outros, eram tristes os dias e as raras conversas, melancólicas. Só aos poucos ia-se esbatendo a sombra da morte, finalmente expulsa por aquele resto de vida, pelo único desejo de amor que lhes sobrava: o de não morrer.

Renasciam o riso cansado, a pequena ambição de ganhar uma partida no tabuleiro, a gula, voltavam a animar-se as conversas na estação, na praça, agora na sala do comandante, à noite.

Frágeis eram os muros de interesses a ocultar-lhes a morte, a defendê-los de sua pesada presença, a fechar-lhes os olhos para a sua sinistra visão.

Estivera o comandante no velório. Vestido com seu paletó de sarja azul com botões metálicos, o cachimbo e o boné. Mas, talvez porque mal chegara da cidade, não entrara curvado e abatido como se aquele cadáver fosse apenas um prólogo de sua própria morte. . . Fitou a face descarnada de Doninha, a quem não chegara a conhecer, e comentou quase risonho:

- Vê-se que quando moça foi uma bela mulher. . .

Era um velório sonolento e silencioso. Cada um pensava em si próprio, via-se estendido num caxão, entre velas de mau odor, flores aos pés, para sempre terminado. Por vezes um ou outro estremecia, o medo estava cravado em cada um deles, o medo da morte.

 Não pensavam em Doninha, em sua mocidade, numa distante e duvidosa beleza. A frase do comandante arrancou-os daquele torpor. Marreco, que conhecera a finada na juventude, buscou na memória:

- Bonitona, sim.

Site Meter