OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 11
De como a sensual bailarina Soraia e o rude marinheiro
Giovanni participaram do velório e do enterro da velha Doninha Barata
- Nem mesmo a morte - aliás, aguardada há meses - de Doninha
Barata, viúva de Astrogildo - Barata, aposentado das Águas e Esgotos, conseguiu
abrir um hiato no interesse despertado pela chegada e instalação do comandante.
Como se já não lhes sobrasse tanto tempo para o medo.
Exteriormente nada mudara, velório e enterro obedeceram ao
mesmo cerimonial, apareceram vagos parentes da cidade, veio o Padre Justo, de
Plataforma, encomendar o corpo, as mulheres despovoaram de flores seus jardins,
os velhos calçaram sapatos e puseram gravatas para o funeral.
No entanto,
houvera uma subtil e indelével diferença, como se a presença da morte não se
fizesse sentir tão brutalmente, como se ela houvesse demorado menos tempo entre
eles. Porque quando a morte, de longe em longe, passava por Periperi, não ia
logo embora, apenas concluía sua macabra tarefa.
Ficava por ali, mesmo depois
do enterro, sua sombra gélida estendida sobre os aposentados e retirados dos
negócios, sobre suas curvadas esposas, e os corações se apertavam como se a
garra da morte os comprimisse, a experimentá-los.
Perdia a brisa sua leve
carícia, eles sentiam nas costas dobradas pelo medo o hálito fúnebre espalhado
pela morte; por quem viria ela em sua próxima visita?
Não, não era a mesma coisa a presença da morte lá na cidade
da Baía, rápida e banal nas rodas de um automóvel, nos leitos dos hospitais,
nas páginas de desastres e crimes dos jornais.
Era leviana e secundária, por
vezes não merecia mais de duas linhas nas gazetas, desaparecendo em meio a
tanta vida a cercá-la, a tanto ruído e luta, não havia lugar para ela nos
corações apressados, dissolvia-se sua sombra nas luzes, e os risos não deixavam ouvir seu murmúrio.
Seu podre bafo, como iriam senti-lo as mulheres envoltas em perfume, em cálidas
vagas de desejo? Passava a morte despercebida, apenas executava sua tarefa e já
desaparecia, não havia tempo a perder com ela em meio a tanta ânsia e pressa de
viver.
“Fulano morreu”, anunciava-se, nos jornais, nos rádios, nas
conversas, “coitado!”, “pobre dele!”, “já foi tarde”, “era tão moço ainda. .
.”, e não se falava mais nisso, havia muito assunto a comentar, muito riso a
rir, muita ambição a satisfazer, muita vida a viver.
Em Periperi era diferente: não era vida feita de trabalho e
luta, de ambição e dificuldades de amor e ódio, de esperança e desespero, a que
ali viviam ou vegetavam. Ali o tempo se alongava nada o apressava, os
acontecimentos duravam acontecendo.
E o mais longo de todos era a morte, jamais
banal e rápida, sempre fulgurante e demorada, apagando, com sua chegada, todas
as aparências de vida do lugar. Não já começavam eles a morrer, os aposentados
e retirados dos negócios, quando ali desembarcavam, trazidos pelo desejo de
viver o maior tempo possível, de prolongar os anos, longe da agitação e dos
desejos?
Era uma população de velhos sem outro real interesse senão a própria
vida, e a morte de um deles matava um pouco a todos, ficavam cabisbaixos e
melancólicos.
As partidas de dama e de gamão rareavam, alguns deixavam
mesmo de sair de casa, agravavam-se as mazelas de outros, eram tristes os dias
e as raras conversas, melancólicas. Só aos poucos ia-se esbatendo a sombra da
morte, finalmente expulsa por aquele resto de vida, pelo único desejo de amor
que lhes sobrava: o de não morrer.
Renasciam o riso cansado, a pequena ambição
de ganhar uma partida no tabuleiro, a gula, voltavam a animar-se as conversas
na estação, na praça, agora na sala do comandante, à noite.
Frágeis eram os muros de interesses a ocultar-lhes a morte,
a defendê-los de sua pesada presença, a fechar-lhes os olhos para a sua sinistra
visão.
Estivera o comandante no velório. Vestido com seu paletó de
sarja azul com botões metálicos, o cachimbo e o boné. Mas, talvez porque mal
chegara da cidade, não entrara curvado e abatido como se aquele cadáver fosse
apenas um prólogo de sua própria morte. . . Fitou a face descarnada de Doninha,
a quem não chegara a conhecer, e comentou quase risonho:
- Vê-se que quando moça foi uma bela mulher. . .
Era um velório sonolento e silencioso. Cada um pensava em si
próprio, via-se estendido num caxão, entre velas de mau odor, flores aos pés,
para sempre terminado. Por vezes um ou outro estremecia, o medo estava cravado
em cada um deles, o medo da morte.
Não pensavam em Doninha, em sua mocidade, numa distante e duvidosa
beleza. A frase do comandante arrancou-os daquele torpor. Marreco, que
conhecera a finada na juventude, buscou na memória:
- Bonitona, sim.
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