sábado, março 01, 2014

A glória recente e retumbante do capitão enchia Periperi...
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 18










Aquela lua-de-mel do comandante com Periperi, sem nuvens no céu de infinito azul, durou mais ou menos um mês. Talvez pudesse prolongar-se bem mais tempo se não houvesse regressado da cidade, onde passava uns meses com o filho advogado, o velho Chico Pacheco, ex-fiscal de consumo, morador ali há mais de dez anos, uma espécie de dono da terra.

Já falei acerca de seu carácter: quizilento e arreliento, má-língua, homem da dúvida e da malícia, cheio de arestas. Fora aposentado antes de tempo, devido a perseguições administradas, andara se envolvendo em política, na oposição. Dizia-se vítima de inimigos poderosos, vinha movendo há anos uma acção contra o Estado.

Em parte conseguira sucesso, obtendo substancial aumento em sua aposentadoria, mas continuava, teimoso, querendo receber, por via judicial, um dinheirão do governo.

Esse processo era dos assuntos mais comentados de Periperi, assentava-se nele, em suas peripécias, grande parte do prestígio de Chico Pacheco. Sua volta de constantes viagens à Baía, onde se demorava em casa do filho para acompanhar a marcha do processo, era uma festa para os aposentados e retirados dos negócios.

Chico Pacheco amava narrar os pormenores da questão, agora no Superior Tribunal de Justiça, e sabia fazê-lo. Desabafava contra desembargadores, arrasava burocratas e políticos, conhecia minudências da vida de magistrados, procuradores, advogados, de todos aqueles que, por um ou outro motivo, tinham qualquer interferência no caso. Era um repositório de anedotas, de malignidades, de divertidas misérias.

 O seu interminável processo pertencia, em realidade, a toda a população de Periperi. Solidários com Chico Pacheco, os aposentados e retirados dos negócios revoltavam-se quando uma petição qualquer do inimigo entravava a marcha dos autos, quando um pedido de vistas adiava uma decisão.

A senhora de Augusto Ramos, aquela apreciadora de histórias, fizera mesmo uma promessa ao Senhor do Bonfim: mandaria rezar missa em sua igreja se Chico Pacheco triunfasse.

Pena não habitar ali, naquele tempo, o Meritíssimo Dr. Siqueira. Que grande ajuda não poderia ele prestar, não só a Chico, como a toda a população, com seus conhecimentos, suas luzes...

Uma festa monumental, planejada nas tardes longas, comemoraria a vitória, Chico Pacheco prometia abrir champanhe quando recebesse a bolada.

Daquela vez ele voltava amargurado. Tudo parecia em vésperas de uma solução, o processo em pauta, quando o Estado entrara com novas petições, e o julgamento ficara adiado, “para as calendas gregas”, como disse ele, ao saltar, ao chefe da estação.

Desembarcou repleto de histórias, de anedotas, de revelações contra juízes e advogados, um mundo de novidades. Necessitando, ao mesmo tempo, da atenção solidária e animadora dos vizinhos e amigos. E encontrou-se atirado a um segundo plano inaceitável: a glória recente e retumbante do capitão-de-longo-curso enchia Periperi de ponta a ponta, seu nome em todas as bocas, seus feitos glosados a cada instante.

De que valiam as tricas de um processo a eternizar-se no fórum, ao lado das histórias de naufrágios, tempestades, amores? Como comparar-se “sub judice” com Hong-Kong ou Honolulu? Sem falar no telescópio, na roda do leme, no cronógrafo.

- Sabe o que é um cronógrafo, seu Chico Pacheco?

- Nem quero saber ... Vou-lhe contar a sujeira do Desembargador Pitanga, aquele que a mulher pariu sete filhos, de sete pais diferentes. Esse rei dos cornudos...

- Você precisa ver a colecção de cachimbos. Vai até esquecer a sua questão ...

E assim por diante. Investia Chico Pacheco com seu processo, respondiam-lhe com cartas geográficas, dançarinas árabes, marinheiros bêbados. Falava de um recurso interposto, contestavam-lhe com uma aventura do comandante.

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