A minha professora da escola, Srª Dª Ludovina |
A MINHA
PROFESSORA
da ESCOLA PRIMÁRIA
- Srª. Dª. LUDOVINA
Estávamos em meados da década de 40 quando entrei para
a escola e os professores constituíam, nessa época, um dos pilares do Estado
Novo para transmitirem às novas gerações os princípios da doutrina social do
regime de Salazar.
Com cinco anos de idade eu não entendia nada disso mas
o que eu posso dizer é que a minha Professora - Srª. Dª. Ludovina - foi a pessoa de quem eu tive mais respeito
(para não dizer medo) em toda a minha vida e, por isso, quando hoje se discute
a polémica da autoridade nas escolas não posso deixar de pensar na minha
professora da escola primária que foi, para mim, a personificação da própria
autoridade com tudo o que este conceito tem de negativo.
Já em fim de carreira por força da idade, a Srª. Dª.
Ludovina parecia, aos meus olhos de criança, ter sido sempre velha, gorda, com
os pulsos grossos como os dos homens mas cheios de pulseiras e aquele carrapito
pregado na nuca mais se assemelhava a uma espécie de carrasco de crianças
indefesas que nos aparecia nos sonhos maus enquanto dormimos.
Depois, possuía instrumentos de tortura:
- Um ponteiro que ela mantinha ao alto, do seu lado
direito, espécie de guarda-pretoriana, com que vergastava a cabeça dos alunos
quando os chamava ao quadro negro ou ao mapa e as coisas não corriam bem;
- Uma régua com cerca de 50cm de comprimento por 1 de
espessura e que ela usava de duas maneiras: segurando na mão do aluno com a
esquerda e batendo com a direita dobrando-lhe bem os dedos para baixo de forma
a expor o mais possível a palma da mão ao impacto com a régua ou, numa versão
mais dura, pondo as costas da mão do aluno em cima da secretária numa faixa em
que ela não era lisa e batendo-lhe com a régua com toda a sua força, puxando o
braço bem atrás e acima sendo que o resultado era sempre o mesmo; mãos inchadas,
às vezes mesmo muito inchadas como trambolhos.
--O terceiro instrumento de tortura, este de carácter
psicológico, consistia numa carapuça de papel com orelhas de burro que era
colocada na cabeça do aluno exposto à janela aberta com um livro aberto nas
mãos para escárnio e troça de toda a rapaziada que passava na rua vinda do “bairro-chinês”,
o primeiro e mais antigo bairro de lata da cidade de Lisboa, erradicado ao
tempo em que João
Soares , filho do Presidente Mário Soares, foi Presidente da
Câmara.
Este foi o cenário com que eu, aos 5 anos, me deparei
quando cheguei à escola e por isso, regressado um dia a casa, disse à minha
mãe:
- Mamã, não vou mais à escola porque eu não sei nada!
Tentava eu, considerando-me à partida um caso perdido
para o ensino, escapar à tortura que me esperava…mas sem resultado, já se vê...
Não interessa se fiz a 4ª Classe aos 9 anos com
distinção porque durante todo o tempo em que andei na escola considerei-me a
criança mais infeliz deste mundo e, por arrastamento, odiei o estudo, os livros
e o ensino invejando sinceramente os miúdos da rua, de pé descalço, que não
andavam na escola e não tinham que ter medo da Srª. D.ª Ludovina, mesmo que à
noite só tivessem um bocado de pão para comer e um colchão duro para dormir.
Confrontando a minha dolorosa experiência enquanto
aluno da instrução primária com as cenas daquele vídeo que correu por aí há uns
tempos, mostrado até à exaustão, em que uma professora e aluna se digladiavam
na sala de aulas por causa de um telemóvel, o que parece estar longe de ser
caso único, tenho de concluir que ao tempo que levo de vida e do mundo este já não
tem nada a ver com aquele onde nasci.
E não é por haver hoje coisas que então nem sonhávamos
que viessem a existir, não, é porque as pessoas vivem e relacionam-se agora de
maneira não só diferente como às vezes mesmo quase oposta.
Em 1945 as
crianças tremiam quando entravam na sala de aulas, hoje, quem treme são os
professores.
A minha professora, a Srª. Dª. Ludovina, (o respeito e
medo que ela me inspirou fará, mesmo 100 anos que eu viva, a tratá-la sempre
respeitosamente por … Srª Dª Ludovina!) provocou estragos em mim que perduraram
pela vida fora porque não é impunemente que se é criança e vítima de uma
professora que sendo uma pessoa autoritária tinha ainda atrás de si a dar-lhe
força um estado autoritário, uma cultura autoritária, famílias autoritárias.
Tudo estava a favor dela: apoio e consentimento dos pais e do governo cujo regime político era de molde a inculcar nos cidadãos, quanto mais cedo melhor, estados de espírito de medo, obediência cega e disciplina indiscutível.
Nas escolas de Salazar os professores não existiam só para
ensinar mas também para amedrontar porque aqui lo
que se preparava era uma nova sociedade de pessoas, ordeiras, bem comportadas,
respeitadoras, tementes a Deus e a toda a espécie de autoridades terrenas que
usassem farda ou desempenhassem cargos oficiais.
A transmissão de conhecimentos é um processo árduo e
difícil, que exige entrega, vontade, sacrifício, concentração, trabalho e, naturalmente,
o cenário propício para que ele possa ocorrer não é, com certeza, uma escola
onde, ao entrar, como referia uma professora de matemática, a sala de aulas
mais parece um manicómio …e como os tempos do ponteiro, da palmatória e das
orelhas de burro já lá vão, professores e alunos têm que se entenderem e
partirem para o equi líbrio nas suas
relações.
A minha neta, depois dos 3 anos, entrou no Jardim
Escola, que adorou. Este ano, já no 2º Ano, a que antigamente chamávamos de 2ª Classe, na Escola a sério, mantém o mesmo estado de espírito. Só acha que a professora grita de mais … gostaria de um pouco mais de disciplina por parte dos outros meninos e meninas...
No Jardim Escola puseram-lhe a alcunha da “crescida”e
agora na Escola chamam-lhe “a mãe” e eu acho que ela ainda acaba em assistente
da professora… Tem Muito Bom a todas as disciplinas e faltar, um dia que fosse,
seria para ela um sacrilégio. Considerando que
anda igualmente, na Escola de Inglês, de Natação e de Ténis a sua Agenda está
sempre carregada… o que ela aceita com a naturalidade das suas sagradas
obrigações.
Em 1945, com a Professora Srª Dª Ludovina, não seria
possível à Filipa adorar a escola como ela adora. Sensível como é, rejeitaria
um ambiente de violência física que a traumatizaria. As crianças são sedentas
de amor e carinho e se ele existir no ambiente escolar os alunos irão amar os
livros e o professor a personagem principal que se recordará para toda a vida.
Também eu não esqueci, pelo resto da vida, a minha
professora da Instrução Primária, a Srª Dº Ludovina, infelizmente pelas piores
razões.
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