quarta-feira, março 05, 2014

Pois lhe informaram errado caro amigo...
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 21










Talvez nem isso: quem sabe, não saíra jamais o comandante (comandante, um corno!) do rio São Francisco, de uma gaiola qualquer, de Joazeiro a Pirapora, de Pirapora a Joazeiro a vida toda.

Com aquela fachada de mascate, de vendedor a prestações, só os bobos se iludiam, não ele, Chico Pacheco, habituado a lidar com advogados ladinos, com sabidórios do forum, com gatunos de toda espécie.

Essas histórias de portos da Ásia, de ilhas do Indico, de mulheres do Ceilão, de marinheiros gregos, Vasco as sabia, certamente, de leituras de tê-las ouvido contar ou simplesmente as inventava.

 Navio-gaiola no rio São Francisco, era o máximo que Chico Pacheco lhe concedia. Derrotado pelo diploma em sua primeira investida, não desanimou, fibra temperada por dez anos de litígio com o Estado.

Enquanto esperava os compêndios encomendados ao filho (nem que tivesse de dedicar o resto da vida ao estudo da Geografia...) resolveu explorar os pontos fracos do inimigo. Detalhes capazes de despertar a dúvida e obter-lhe aliados.

Reparou logo na decepção de Emílio Fagundes. Quando na Secretaria de Agricultura, Emílio Fagundes chegara a ter o nome impresso nos jornais devido a seu gosto e jeito para o jogo no xadrez. Disputara mesmo um campeonato no Rio, obtivera o quarto lugar, um sucesso!

Agora, aposentado, sua única restrição a Periperi era a ausência de um bom parceiro, não havia ali quem fosse além da dama, do gamão, do dominó.

Enchera-se de esperanças com a chegada do comandante (comandante, uma bosta!), logo desfeitas: o homem mal distinguia uma torre de um bispo, um cavalo de um rei. Devia continuar a jogar, por correspondência, com parceiros da capital, a resolver problemas das secções especializadas de jornais e revistas. Uma desilusão.

- Pensei que um homem do mar tinha de saber xadrez... - confidenciou um dia a Chico Pacheco.

Pela primeira vez em sua vida, entusiasmou-se o ex-fiscal de consumo pelas complicações do xadrez. Até então considerava-o um jogo cacetíssimo e Emílio Fagundes um lunático. Era realmente de estranhar-se o desinteresse de um homem do mar por jogo tão útil para matar o tempo.

Para as longas horas de navegação calma não devia existir melhor passatempo. Resolveu atirar com o tabuleiro de xadrez no tombadilho, mesmo na hora mais emocionante, quando o comandante (comandante, um xibiu!) evitara um choque de consequências trágicas entre seu navio e um desarvorado imenso iceberg, no Mar do Norte, em noite de bruma e frio.

A cerração era tal que podia ser cortada a faca como um queijo, ia o negro buquê em marcha reduzida, seus apitos angustiosos avisando o perigo, os passageiros em pânico, quando a massa branca de gelo apareceu a bombordo, montanha a navegar . ..

- Seu Vasco, me diga aqui uma coisa.. .

- Comandante Vasco Mocoso de Aragão, às suas ordens.

Não dispensava o título, pois, como ele dizia, outro bem e honra não possuía além de sua carta de comando. Chico Pacheco, num esforço, continha os palavrões, dava-lhe o título:

- Pois, seu comandante (de merda...), me diga aqui uma coisa que me está fazendo mossa: como é que o senhor, homem do mar, com um tempão para matar, não sabe jogar xadrez? Tenho ouvido dizer que é jogo muito apreciado nas embarcações...

- Pois lhe informaram errado, caro amigo. Jogo de marinheiro é jogo de dados ou de baralho, jogo de azar. Um póquer bem disputado, isso sim. Passei noites e noites sem dormir, até o sol nascer, em mesas de póquer...

E, tomando da deixa, foi adiante, impávido:

- Naquela vez que naufraguei em Rasmat, a ilha parecida com Periperi, só levávamos no barco uns biscoitos, um pouco de água e um baralho. E mesmo ali, ameaçados por todos os lados, jogamos um bom póquer. Éramos cinco e enquanto um ficava no leme, os outros quatro apostavam. Jogamos os biscoitos e os goles dágua a que tínhamos direito. Foi divertido. Dois dias e duas noites... 

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