terça-feira, março 04, 2014

"Uma palhaçada" resmungava Chico Pacheco
Os VELHOS

 MARINHEIROS


Episódio Nº 20










Como concorrer com um exagerado sem medidas, plantado na coberta de navios no meio de mares e oceanos remotos, às voltas com tempestades, naufrágios, tubarões, batido por todos os ventos e repleto de mulheres, a maioria delas apaixonadas e lúbricas, umas vacas?

Chico Pacheco apertava os olhos miúdos: nunca vira descaramento igual. Nem mesmo Romeu das Dores, cuja profissão era testemunhar em falso nos tribunais (pagamento adiantado), velho bêbado e debochado, era tão cínico.

 Não possuía o comandante (comandante, uma figa!) nenhum senso do ridículo, ia metendo a cara e contando, a entremear a história com nomes sonoros e complicados de porcos e acidentes geográficos, com termos náuticos, e vendia sua peta bem vendida, pelo mais elevado preço.

 Babavam-se aqueles ingénuos bestalhões de Periperi, cambada de bocós. Só faltavam lamber a bunda do comandante (comandante, uma banana!), uns palermas!

Concorrer, impossível. Restava-lhe desmascarar o impostor, denunciar o charlatão. Ah! se soubesse Geografia, jogar-lhe-ia aos pés umas coimas, umas latitudes e longitudes, embrulharia suas escalas, rapidamente obrigá-lo-ia a descer da ponte de comando e a desembarcar para sempre. “Preciso mandar buscar uns livros de escola em Salvador.”

Vivia, desde sua volta, a roer um despeito medonho. Fizera-se mais amarela sua habitual palidez, ameaçava um ataque de bílis.

 O vulto de Vasco Moscoso de Aragão, seus cachimbos, os instrumentos de navegação, os mapas e navios enquadrados, luneta e telescópio, seu altaneiro boné dominavam Periperi de ponta a ponta, da estação à praia, não havia lugar para outra importância, outra celebridade, outro herói.

 Pitando seu cigarro de palha e fumo de corda (de que valia um cigarro de palha, ainda por cima malcheiroso, ante um cachimbo de espuma-do-mar, perfumado tabaco?), ruminava Chico Pacheco rancores e planos de vingança.

No entanto - reflectia - estava na cara, só não enxergava quem não quisesse ou esses parvos ouvintes já mais do lado de lá, no caminho do cemitério.

O néscio do Zequinha Curvelo, esse, de tanto admirar, virava marinheiro de segunda classe, andava atrás do charlatão como um ordenança, conduzindo-lhe a luneta para a grotesca cerimónia de inspeccionar a baía do alto dos rochedos, à entrada dos navios.

Juntava gente para ver, era como se o porto da Bahia estivesse agora sob a guarda e a direcção dos habitantes de Periperi. Ao descer, Vasco anunciava:

- É um paquete holandês. Manobra perfeita... Ou revelava, sigiloso:

- Um cargueiro do Panamá... Deve conduzir muito contrabando...

Trocavam olhares cúmplices, sentiam-se envolvidos em arriscadas empresas, um pouco contrabandista cada um deles, sobretudo Zequinha Curvelo.

 “Uma palhaçada”, resmungava Chico Pacheco, ainda mais amarelo, o gosto amargo da inveja na boca de dentes podres. Fitava a face risonha e cordial do comandante (comandante, uma ova!), o ar de dono de armarinho, e cada vez mais se convencia de que algum dia aquele tipo embarcara fora em naviozinho micha, costeiro, e além dos portos de Ilhéus, Aracaju e Belmonte não ia seu conhecimento.

Andara insinuando, como quem não quer nada, suas suspeitas. Esfregaram-lhe na cara o diploma, assinado e registado, à vista de todos na sala, em sua moldura doirada.

 Sim, o diploma era uma realidade difícil de negar. Mas que provava, além do comando de um daqueles minúsculos navios da Companhia Bahiana, onde, na curta rota de Caravelas a Salvador, os passageiros vomitavam a alma? 

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