"Uma palhaçada" resmungava Chico Pacheco |
Os VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 20
Como concorrer com um exagerado sem medidas, plantado na coberta de navios no meio de mares e oceanos remotos, às voltas com tempestades, naufrágios, tubarões, batido por todos os ventos e repleto de mulheres, a maioria delas apaixonadas e lúbricas, umas vacas?
Chico Pacheco apertava os olhos miúdos:
nunca vira descaramento igual. Nem mesmo Romeu das Dores, cuja profissão era
testemunhar em falso nos tribunais (pagamento adiantado), velho bêbado e
debochado, era tão cínico.
Não possuía o comandante (comandante, uma
figa!) nenhum senso do ridículo, ia metendo a cara e contando, a entremear a
história com nomes sonoros e complicados de porcos e acidentes geográficos, com termos
náuticos, e vendia sua peta bem vendida, pelo mais elevado preço.
Babavam-se aqueles ingénuos bestalhões de
Periperi, cambada de bocós. Só faltavam lamber a bunda do comandante
(comandante, uma banana!), uns palermas!
Concorrer, impossível. Restava-lhe
desmascarar o impostor, denunciar o charlatão. Ah! se soubesse Geografia,
jogar-lhe-ia aos pés umas coimas, umas latitudes e longitudes, embrulharia suas
escalas, rapidamente obrigá-lo-ia a descer da ponte de comando e a desembarcar
para sempre. “Preciso mandar buscar uns livros de escola em Salvador.”
Vivia, desde sua volta, a roer um
despeito medonho. Fizera-se mais amarela sua habitual palidez, ameaçava um
ataque de bílis.
O
vulto de Vasco Moscoso de Aragão, seus cachimbos, os instrumentos de navegação,
os mapas e navios enquadrados, luneta e telescópio, seu altaneiro boné
dominavam Periperi de ponta a ponta, da estação à praia, não havia lugar para
outra importância, outra celebridade, outro herói.
Pitando seu cigarro de palha e fumo de corda
(de que valia um cigarro de palha, ainda por cima malcheiroso, ante um cachimbo
de espuma-do-mar, perfumado tabaco?), ruminava Chico Pacheco rancores e planos
de vingança.
No entanto - reflectia - estava na cara,
só não enxergava quem não qui sesse
ou esses parvos ouvintes já mais do lado de lá, no caminho do cemitério.
O néscio do Zequi nha
Curvelo, esse, de tanto admirar, virava marinheiro de segunda classe, andava
atrás do charlatão como um ordenança, conduzindo-lhe a luneta para a grotesca
cerimónia de inspeccionar a baía do alto dos rochedos, à entrada dos navios.
Juntava gente para ver, era como se o
porto da Bahia estivesse agora sob a guarda e a direcção dos habitantes de
Periperi. Ao descer, Vasco anunciava:
- É um paquete holandês. Manobra perfeita...
Ou revelava, sigiloso:
- Um cargueiro do Panamá... Deve
conduzir muito contrabando...
Trocavam olhares cúmplices, sentiam-se
envolvidos em arriscadas empresas, um pouco contrabandista cada um deles,
sobretudo Zequi nha Curvelo.
“Uma palhaçada”, resmungava Chico Pacheco,
ainda mais amarelo, o gosto amargo da inveja na boca de dentes podres. Fitava a
face risonha e cordial do comandante (comandante, uma ova!), o ar de dono de
armarinho, e cada vez mais se convencia de que algum dia aquele tipo embarcara
fora em naviozinho micha, costeiro, e além dos portos de Ilhéus, Aracaju e
Belmonte não ia seu conhecimento.
Andara insinuando, como quem não quer
nada, suas suspeitas. Esfregaram-lhe na cara o diploma, assinado e registado, à
vista de todos na sala, em sua moldura doirada.
Sim, o diploma era uma realidade difícil de
negar. Mas que provava, além do comando de um daqueles minúsculos navios da
Companhia Bahiana, onde, na curta rota de Caravelas a Salvador, os passageiros
vomitavam a alma?
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