... minhas Irmãs.
Conta-se
a história daquele homem que já muito velhinho, sentindo-se bastante doente, saiu
ao seu qui ntal e por momentos
abraçou cada uma das suas árvores. Depois, regressou a casa, deitou-se e morreu
tranqui lo. Para ele, era indiferente
que uma fosse figueira, outra laranjeira e três ou quatro oliveiras. A todas,
ao longo de uma vida, tratara de igual modo. Regara-as, arrancara-lhes os ramos
secos e tratara da terra que as possuía e alimentava.
Elas, em troca, deram-lhe a sombra à
qual se recolhia no fim das tardes solarengas de verão e os frutos:
figos pretos de tamanho médio, doces
e saborosos, laranjas grandes e sumarentas e azeitonas pretas que ele retalhava, demolhava para perderem o sabor
azedo e depois temperava com sal e orégãos. Com nacos de pão de trigo caseiro
eram o melhor acompanhamento.
Naqueles momentos em que percebera
que a vida o ia abandonar não conseguiu evitar vê-las mais uma vez, tocar-lhes
com afecto, no fundo… despedir-se delas.
De certa forma, é uma falácia
afirmarmos que somos donos das árvores… Elas vivem muito mais tempo que nós. Já
cá estavam quando nascemos, cá ficam depois de morrermos e as suas vidas
correspondem à vida de gerações de pessoas. Algumas, chegam mesmo a manterem-se
vivas durante séculos, para não referir já o velho pinheiro chamado de
“matusálém”, na Califórnia, que pela contagem dos anéis, já leva 4.800 anos de
existência.
Outras, pelo seu tamanho, deveriam
ser consideradas monumentos da Natureza:
- As Sequóias “Sempre Verdes” da
costa norte-americana do Pacífico batem todos os recordes chegando a atingir, a
mais alta de todas, 115,6
metros . A Sequóia “Gigante”, a maior árvore do mundo,
tem cerca de 1.500 m3
de volume o que significa que para a transportar seria necessária uma frota de
40 camiões TIR.
Da minha meninice trago comigo um sobreiro, um pinheiro manso e uma
tangerineira. Guardei-as na minha memória com todo o carinho.
O sobreiro era
uma árvore centenária, enorme, cheia de “personalidade”, respeitável, como são
todos os sobreiros velhos. Vivia no meio de um caminho que dava acesso a uma
propriedade que o meu pai tinha de renda.
Não
empatava o trajecto do velho Vauxal comprado logo a seguir à guerra, era eu
ainda menino, porque ele aprendera a desviar-se e já lá tinha o trilho das suas rodas marcado
para que não houvessem dúvidas no trajecto.
Um
dia, o meu pai pensou no dinheiro que podia fazer com a sua madeira
transformada em carvão e matou-o.
Eu, garoto, infelizmente, assisti. Vieram uns
homens com uns machados e começaram a cortar-lhe as raízes que estavam fora da
terra, para o enfraquecer. Depois ataram-lhe cabos de aço às pernadas mais
altas e com alavancas e roldanas fixadas no chão puxaram, puxaram até que as
raízes, escondidas debaixo da terra, rebentaram e ainda hoje sinto vontade de tapar
as orelhas para não ouvir os barulhos surdos que saíam das entranhas da terra, como se
fossem gritos de protesto e de dor.
Uns
anos mais tarde, foi a vez do pinheiro manso. Era muito alto, completamente
direito e teria já muita idade. Estava sozinho naquela encosta numas terras,
junto à aldeia, que eram do meu avô.
No tempo das pinhas íamos debaixo dela –
nós chamávamos-lhe “pinheira” porque nos parecia mais lógico. Dava-nos pinhas e
no tempo delas íamos apanhá-las e à noite abríamo-las ao calor do fogo da
lareira e era uma festa com as cascas dos pinhões a saltarem para todo lado ao
sabor das marteladas e a minha avó a ralhar porque tinha de ser ela a varrer o
que eu e o meu irmão sujávamos. Nunca mais voltei a comer pinhões tão
saborosos.
Também
um dia o meu pai o mandou matar. A sua madeira, muito boa depois de aparelhada, para a
construção de casas, deve ter rendido bom dinheiro e durante toda a minha vida,
sempre que passava na estrada evitava olhar para aquela encosta onde ela já não estava
para não ter o desgosto de a não ver.
A terceira
árvore era uma delicada tangerineira no qui ntal
da minha avó. Havia lá mais mas aquela era muito pequenina, airosa e redondinha
e nenhuma das outras dava tangerinas tão doces e saborosas. Ainda miúdo de
calções, sentava-me no poial, junto dela, e saboreava deliciado as tangerinas
com a sensação que elas as tinha criado só para mim.
Mas
o homem, tem-se permitido destruir sem dó nem piedade esta herança fabulosa de
vida, sacrificando no altar de interesses mesqui nhos
de pessoas muito ricas que podem pagar tudo, seja a que preço for, florestas
cheias de vida animal de uma maneira perfeitamente criminosa.
No
fundo, prevalece o egoísmo da geração presente numa postura que se traduz no
tal: “quem vier atrás que feche a porta…”
Deixámos as aldeias, as casas com quintais, as hortas, já não temos relações afectivas com as nossas árvores e a preocupação de ter que as regar no verão.
Nem sempre terá sido assim.
O homem do paleolítico vivia em
comunhão com a natureza numa época em que predominavam as florestas.
No silêncio da noite, nos seus locais
de dormida, ele ouvia os sons do vento perpassarem por entre as folhas dos
ramos mais altos e sensíveis das árvores que o rodeavam.
Esses sons pareciam uma conversa em
privado, umas vezes ligeiramente mais acalorada, outras em frases mais longas e
monocórdicas interrompidas por silêncios intermitentes.
O homem do paleolítico ouvia deitado,
e pareceu-lhe a ele, ser primitivo, que eram os deuses que falavam com as
árvores.
Humilde, frágil, dependente da
natureza, mas muito sagaz e observador, pensou aproveitar aquele relacionamento
entre árvores e deuses a seu favor utilizando aquelas como intermediárias entre
ele e os deuses.
Assim, discretamente, levantava-se,
dirigia-se a uma das árvores mais altas, tocava-lhe com respeito e em surdina contava-lhe
as suas angústias e receios e pedia-lhe que solicitasse aos deuses a protecção
para si, para a sua família e para o seu grupo.
Passaram-se milénios e quase tudo
aconteceu de então para cá. Fomos compreendendo melhor as forças da natureza,
domesticámos plantas e animais, construímos cidades e civilizações,
progressivamente começamos a desenlear o fio do conhecimento científico e no
entanto, apesar de um tão longo caminho percorrido desde então, eu próprio, que
nem sequer sou crente, dou por mim a bater com os nós dos dedos da minha mão
fechada na madeira do tampo da mesa – à falta de uma árvore - para afastar os
mais presságios…
…. Por isso gosto de lhes chamar, de uma
forma talvez menos veneranda que o meu antepassado do paleolítico mas pensando nas três árvores da minha meninice... minhas irmãs árvores...
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