Capitão de longo curso? Pra mim não é capaz de comandar nem uma canoa... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 19
Estava, à tarde, relatando as intrincadas
novidades da causa para uma assistência pouco entusiasta quando súbita animação
revelou o comandante a aproximar-se no seu passo de senhor dos mares.
Chico Pacheco fitou, com os olhos
miúdos, o cavalheiro baixote e troncudo, a vasta cabeleira, o nariz adunco,
cuspiu:
- Capitão de longo curso? Pra mim, esse
sujeito não é capaz de comandar nem uma canoa... Tem cara de dono de
armarinho...
Do mal de não se saber Geografia e da
errada tendência ao blefe no jogo de poker.
- Ah! se eu soubesse Geografia .. .
Chico Pacheco repetia a frase entre
dentes, lastimando os dias vagabundos da adolescência: fora renomado filante de
aulas. E o tempo perdido durante uma vida inteira, gasto em inutilidades,
quando poderia ter-se dedicado, de corpo e alma, ao estudo intensivo da
Geografia, ciência de cuja extrema utilidade só agora dava-se conta.
- Onde andará Marcos Vaz de Toledo? - perguntava-se,
na esperança de ver desembarcar, por milagre, na gare de Periperi, o colega de
repartição, que não via há mais de vinte anos.
Marcos Vaz de Toledo, sulista e cheio de
si, era um porreta na Geografia. Parecia ter um mapa-múndi na cabeça: capitais,
cidades principais, golfos e ilhas, lagos e lagunas, montanhas e vulcões, rios
caudalosos e simples cursos de água, correntes oceânicas e portos, fluviais e
marítimos...
Portos a escolher, da Europa e da
América, da África, e da Ásia, da Oceania, tinha-os às dezenas na ponta da
língua. Um portento, esse Marcos Vaz de Toledo, mas um tanto secante, maníaco
de seus conhecimentos, obrigando os companheiros a fugirem dele, a evitar-lhe a
convivência.
Era proporcionar-lhe a menor oportunidade e
ele, de piteira longa e assombrosa memória, começava a recitar nomes
arrevesados, de Hamburgo a Xangai, de Nova York a Buenos Aires. O próprio Chico
Pacheco - amigo de falar, inimigo de ouvir - apelidara-o de “navio cargueiro”,
desses que não podem enxergar um porto, por mais miserável, sem nele escalar.
Chico Pacheco reconhecia tardiamente o
erro daquela subestimação dos conhecimentos geográficos. Considerava Marcos Vaz
de Toledo um inoportuno, chatíssimo, dobrava esqui nas
ao vê-lo.
O que não dava para tê-lo agora em Periperi,
com seus mares interiores, seus afluentes e meridianos, aquelas centenas de
preciosos portos... Da maçadora relação
de ancoradouros, guardara apenas os nomes mais conhecidos e fáceis,
completamente inúteis a quem qui sesse
desmascarar um impostor.
Porque estava certo tratar-se de um
impostor, a iludir a boa fé daquela senilidade simplória de Periperi, daqueles
crédulos débeis mentais, prontos a acreditar em qualquer charlatão, a engolir
as mais cabeludas lorotas.
Ele mesmo, em múltiplas ocasiões, lhes
pespegara cada mentira de arrepiar, e os coitados nem desconfiavam.
Não havia no mundo mercado tão profícuo
para um mentiroso comerciar sua mercadoria como Periperi. Recebia em pagamento
a moeda do respeito e da consideração. Prova disso era ele próprio, Chico
Pacheco: acatavam-no mais pelas histórias inventadas sobre juízes e
procuradores, pelo exagero posto na narração dos recursos e tricas jurídicas do
que pela injustiça sofrida.
Apenas suas mentiras eram triviais e
limitadas, seu campo de acção não ultrapassava a cidade da Baía, gente
conhecida, cenários a meia hora de trem.
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