segunda-feira, março 03, 2014

Capitão de longo curso? Pra mim não é capaz de comandar nem uma canoa...
OS VELHOS

MARINHEIROS



Episódio Nº 19









Estava, à tarde, relatando as intrincadas novidades da causa para uma assistência pouco entusiasta quando súbita animação revelou o comandante a aproximar-se no seu passo de senhor dos mares.

Chico Pacheco fitou, com os olhos miúdos, o cavalheiro baixote e troncudo, a vasta cabeleira, o nariz adunco, cuspiu:

- Capitão de longo curso? Pra mim, esse sujeito não é capaz de comandar nem uma canoa... Tem cara de dono de armarinho...


Do mal de não se saber Geografia e da errada tendência ao blefe no jogo de poker.



- Ah! se eu soubesse Geografia .. .

Chico Pacheco repetia a frase entre dentes, lastimando os dias vagabundos da adolescência: fora renomado filante de aulas. E o tempo perdido durante uma vida inteira, gasto em inutilidades, quando poderia ter-se dedicado, de corpo e alma, ao estudo intensivo da Geografia, ciência de cuja extrema utilidade só agora dava-se conta.

- Onde andará Marcos Vaz de Toledo? - perguntava-se, na esperança de ver desembarcar, por milagre, na gare de Periperi, o colega de repartição, que não via há mais de vinte anos.

Marcos Vaz de Toledo, sulista e cheio de si, era um porreta na Geografia. Parecia ter um mapa-múndi na cabeça: capitais, cidades principais, golfos e ilhas, lagos e lagunas, montanhas e vulcões, rios caudalosos e simples cursos de água, correntes oceânicas e portos, fluviais e marítimos...

Portos a escolher, da Europa e da América, da África, e da Ásia, da Oceania, tinha-os às dezenas na ponta da língua. Um portento, esse Marcos Vaz de Toledo, mas um tanto secante, maníaco de seus conhecimentos, obrigando os companheiros a fugirem dele, a evitar-lhe a convivência.

 Era proporcionar-lhe a menor oportunidade e ele, de piteira longa e assombrosa memória, começava a recitar nomes arrevesados, de Hamburgo a Xangai, de Nova York a Buenos Aires. O próprio Chico Pacheco - amigo de falar, inimigo de ouvir - apelidara-o de “navio cargueiro”, desses que não podem enxergar um porto, por mais miserável, sem nele escalar.

Chico Pacheco reconhecia tardiamente o erro daquela subestimação dos conhecimentos geográficos. Considerava Marcos Vaz de Toledo um inoportuno, chatíssimo, dobrava esquinas ao vê-lo.

O que não dava para tê-lo agora em Periperi, com seus mares interiores, seus afluentes e meridianos, aquelas centenas de preciosos portos...  Da maçadora relação de ancoradouros, guardara apenas os nomes mais conhecidos e fáceis, completamente inúteis a quem quisesse desmascarar um impostor.

Porque estava certo tratar-se de um impostor, a iludir a boa fé daquela senilidade simplória de Periperi, daqueles crédulos débeis mentais, prontos a acreditar em qualquer charlatão, a engolir as mais cabeludas lorotas.

Ele mesmo, em múltiplas ocasiões, lhes pespegara cada mentira de arrepiar, e os coitados nem desconfiavam.

Não havia no mundo mercado tão profícuo para um mentiroso comerciar sua mercadoria como Periperi. Recebia em pagamento a moeda do respeito e da consideração. Prova disso era ele próprio, Chico Pacheco: acatavam-no mais pelas histórias inventadas sobre juízes e procuradores, pelo exagero posto na narração dos recursos e tricas jurídicas do que pela injustiça sofrida.

 Apenas suas mentiras eram triviais e limitadas, seu campo de acção não ultrapassava a cidade da Baía, gente conhecida, cenários a meia hora de trem.

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