terça-feira, março 11, 2014

É o que eu sempre digo. Nem falar, nem comandar.
OS VELHOS

 MARINHEIROS

Episódio Nº 26










Não, não podia ser um mentiroso, nem sequer percebia a ironia e a dúvida da piada nem o tom de voz trocista. Se fosse um charlatão, como queria Chico Pacheco, zangar-se-ia, responderia irritado. Adriano Meira arrependia-se:

- O senhor tem razão, Comandante. A gente não deve falar do que não conhece...

- É o que eu sempre digo. Nem falar nem comandar...

Porque não conhecia o El Gamil, cargueiro egípcio, quando aceitara comandá-lo naquela lenta e monótona travessia entre Suez e Aden, transportando cimento.

Loucura da qual só se dera conta quando já era tarde: o barco estava em péssimas condições, nem o aparelho de telefonia funcionava. E a tripulação era constituída de tipos suspeitos, assustadoras carantonhas. Felizmente ia com ele o fiel Giovanni, aquele marinheiro por cuja causa se desentenderia, anos depois, com armadores europeus.

E quando o El Gamil naufragou, com um rombo no casco, só ele e Giovanni conseguiram salvar-se, recolhidos por um navio norueguês, após aquela mortandade de homens e tubarões.

 Guardava ainda a faca providencial, mostrar-lhes-ia uma noite dessas quando fossem tomar um trago em sua casa.

Não ia além dessas passageiras dúvidas, fugidias desconfianças momentâneas, o resultado da desenfreada campanha de Chico Pacheco. Adriano Meira, ao vê-lo, reclamava:

- Lá vem você com essa conversa... O homem é um mentiroso, é só o que você sabe dizer. Fui acreditar, estrepei-me. O comandante me exibiu até a faca com que matou os tubarões...

- Vocês são uns imbecis!

Incompatibilizava-se com uns e outros, cada vez mais amargo e cáustico, boca suja de palavrões, envolvendo em seu desprezo e em sua raiva toda a população de Periperi, os aposentados e suas esposas, todas elas ouvintes fanáticas das aventuras do comandante.

A escolha de Vasco para padrinho da festa de São João, em detrimento de sua candidatura, foi demais. Ainda tentou pressionar o padre, recordando-lhe presentes anteriores e abrindo-lhe perspectivas para doações substanciais quando ganhasse sua questão contra o Estado.

 Depois deblaterou contra o reverendo, transformando-o num dissoluto e num oportunista, o que era evidente exagero, pois o Padre Justo apenas tentava manter a paz de seu rebanho e mesmo as línguas mais ferinas não sabiam de saias em sua vida, além da moça a cuidar do presbitério, aliás de suave e modesta beleza, parecendo imagem de santa.

Não podia Chico Pacheco, antes o mais adulado dos moradores de Periperi, quase tão respeitado quanto o velho Marreco, presença sempre saudada com entusiasmo, aguentar tanta humilhação, tanta deslealdade.

Não suportaria ver o charlatão, com sua cara alvar, de dono de armarinho, ao lado do padre ingrato (devia pelo menos devolver-lhe o capão e o vinho de jurubeba, se possuísse o menor resquício de dignidade), presidindo as festas de São João.

Resolveu partir. Mas como não desejasse tampouco dar uma alegria ao inimigo, inventou estar seu processo em pauta, em vésperas de julgamento. Nem com essa notícia, antes sensacional, conseguiu sacudir a indiferença a cercá-lo agora, tudo por obra e graça de um reles embusteiro vestido com um ridículo paletó de embarcadiço.

Partiu sob uma chuva diluvial, a estação estava vazia. Parecia um fugitivo, escondido em sua raiva impotente.


Onde Dondoca põe chifres morais no narrador

Confesso que a malévola campanha, filha da inveja e do despeito, desencadeada por Chico Pacheco contra o comandante, abalou um pouco a minha antes incondicional admiração pela figura ímpar do herói.

 Algumas de suas aventuras, examinadas à luz da crítica arrasante do ex-fiscal do consumo, parecem-me ser tanto quanto exageradas. Não o digo para influir num prévio julgamento, coloco-me aqui como um historiador imparcial e, se falo no assunto, é porque me causou certa mossa o fato dos aposentados e retirados dos negócios terem dado tão pouca importância aos comentários e observações de Chico Pacheco, de se terem mantido tão solidários com o comandante.

Num trabalho de pesquisa como este a que me atirei (para matar o tempo e também para ver se com ele posso participar de um concurso literário-histórico do Arquivo Público), tentando restabelecer a verdade, certos detalhes necessitam ser levados, se não a debate público, pelo menos ao exame das personalidades gradas, capazes de sobre eles emitirem douta opinião.

Eis por que consultei sobre o assunto o Meritíssimo Dr. Alberto Siqueira, cuja importância representa no Periperi de hoje aquilo que no passado significou a presença do Comandante Vasco Moscoso de Aragão.

 O juiz é homem de saber universal, nenhum ramo do conhecimento humano escapa à sua curiosidade, do Direito à Filosofia, da Economia às discutidas questões sexuais. 

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