sexta-feira, março 21, 2014

Não resistiu a viúva ao golpe da perda do esposo adorado ...
OS VELHOS 

MARINHEIROS

Episódio Nº 35











Quando, na opinião do aliviado sogro, sete palmos de cova rasa já eram demasiada honra para o indesejado genro, conhecido entre os amigos como Aragão Farofa, tais e tantas ele contava.

 Sujeito mais cínico e caradura não acreditava o velho Moscoso houvesse existido sobre a face da Terra. Insensível às indirectas e às insinuações, riu-lhe na cara honrada quando, terminada a longa lua-de-mel, certo dia lhe propôs trabalhar no escritório da firma.

Por quem o tomava o sogro? - perguntara entre divertido e ofendido. Por um incapaz, um pobre-diabo útil apenas para a degradação de um escritório comercial, às voltas com secos e molhados, com bacalhau e batatas?

Com quem pensara ter casado a filha? Parecia não saber do seu talento, de sua capacidade, de suas relações, de seus planos. Não se preocupasse o estimado sogro em arranjar-lhe emprego. Estava com o futuro garantido e, se ainda não começara a trabalhar, devia-se exactamente à dificuldade da escolha entre as cinco ou seis situações, cada qual mais invejável, postas à sua disposição por seus amigos, homens do maior prestígio.

O próprio senhor Moscoso ainda muito se beneficiaria com as amizades do genro: obteria para a firma contratos de fornecimentos para o Estado, para diversas corporações, dinheiro fácil a ganhar.

Que diria o senhor Moscoso, por exemplo, de um fornecimento de carne-seca e bacalhau à Polícia Militar durante todo o ano? Era só ele, Aragão, sussurrar uma palavra ao ouvido do capitão-chefe da Intendência e estaria o assunto resolvido.

Podia o senhor Moscoso contar com o contrato como coisa certa, dinheiro em caixa. Dinheiro integral, pois ele, genro e amigo, não aceitaria nenhuma comissão.

Durante os cinco anos de casado continuou na mesma indecisão, sem decidir-se por nenhuma das cinco ou seis magníficas situações ou pelas novas ofertas de seus amigos podres de prestígio.

Não obteve também nenhum contrato oficial para a firma, ia tratar do assunto invariavelmente no dia seguinte. Firme, porém, manteve-se na recusa de um lugar de empregado do sogro, considerando a repetida renovação da oferta quase uma ofensa e uma provocação.

 Era um carácter, e tão íntegro, que jamais pôs os pés no prédio de três andares, conhecendo-o somente de vista, ao passar pela Ladeira da Montanha.

Ao morrer inesperadamente - ninguém o imaginou jamais enfermo do coração - surgiram os agiotas com títulos vencidos, empréstimos diversos, vales rabiscados a lápis, um dinheirão a pagar, do qual o velho José Moscoso, também ele um carácter, se recusou terminantemente a tomar conhecimento.

Da morte de Aragão Farofa pode-se dizer ter sido chorada pela esposa, pelos muitos amigos nos bares e pelos seus múltiplos credores horrorizados ante a pétrea sensibilidade do sogro do falecido.

Não resistiu a viúva ao golpe da perda do esposo adorado, meses depois era enterrada sob o mesmo mausoléu de mármore. Jamais duvidara ela um minuto sequer do marido, de sua grandeza, de sua fidelidade, de seu devotado amor.

E, de certa maneira, era Aragão Farofa um óptimo esposo, dedicando quase toda a tarde à mulher, acarinhando-a, gentilíssimo com ela, criando-a como criança mimada, nuns dengues de namorado, fazendo-lhe o amor com constância e sabedoria.

Mas, após o jantar, era um homem livre na noite da Baía, tinha sempre sérios assuntos políticos e comerciais a resolver, como fazia questão de explicar à esposa.

Voltava pela madrugada, cheirando a cachaça e a fêmea, o invariável charuto, o invariável sorriso satisfeito. Nem mesmo o nascimento do filho, a ligá-lo ainda mais à esposa, modificou a regularidade de seus hábitos irregulares (na opinião do velho Moscoso).

 Acordava ao meio-dia, comia e bebia do bom e do melhor, reservava a tarde para a esposa e o filho, noite livre nos bares e castelos, na prosa com os amigos a contar histórias.

Uma só virtude reconhecia-lhe o sogro: jamais fora visto bêbado, sua resistência ao álcool era assombrosa.

Debruçado em sua mesa, o velho Moscoso fitava o neto e nele revia o genro de execrada memória. De que adiantara tê-lo trazido menino de dez anos para a firma, tê-lo encaminhado nos negócios?

 Eram os mesmos olhos sonhadores do pai, o mesmo sorriso contente com a vida, a mesma total indiferença ante os problemas do escritório, um desastre. Tinha de tomar providências, e sérias, se não quisesse ver esfacelar-se, nas mãos do neto, a firma poderosa e acreditada, obra de sua vida.

E, realmente, ao sentir a proximidade da morte, transformou a firma individual em sociedade por quotas, limitada, fazendo sócios e interessados alguns de seus mais antigos e capazes empregados.

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