Não resistiu a viúva ao golpe da perda do esposo adorado ... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 35
Quando, na opinião do aliviado sogro, sete palmos de cova rasa já eram demasiada honra para o indesejado genro, conhecido entre os amigos como Aragão Farofa, tais e tantas ele contava.
Sujeito mais cínico e caradura
não acreditava o velho Moscoso houvesse existido sobre a face da Terra.
Insensível às indirectas e às insinuações, riu-lhe na cara honrada quando,
terminada a longa lua-de-mel, certo dia lhe propôs trabalhar no escritório da
firma.
Por quem o tomava o sogro? - perguntara entre divertido e ofendido. Por
um incapaz, um pobre-diabo útil apenas para a degradação de um escritório
comercial, às voltas com secos e molhados, com bacalhau e batatas?
Com quem pensara ter casado a filha? Parecia não saber do seu talento,
de sua capacidade, de suas relações, de seus planos. Não se preocupasse o
estimado sogro em arranjar-lhe emprego. Estava com o futuro garantido e, se
ainda não começara a trabalhar, devia-se exactamente à dificuldade da escolha
entre as cinco ou seis situações, cada qual mais invejável, postas à sua
disposição por seus amigos, homens do maior prestígio.
O próprio senhor Moscoso ainda muito se beneficiaria com as amizades do
genro: obteria para a firma contratos de fornecimentos para o Estado, para
diversas corporações, dinheiro fácil a ganhar.
Que diria o senhor Moscoso, por exemplo, de um fornecimento de
carne-seca e bacalhau à Polícia Militar durante todo o ano? Era só ele, Aragão,
sussurrar uma palavra ao ouvido do capitão-chefe da Intendência e estaria o
assunto resolvido.
Podia o senhor Moscoso contar com o contrato como coisa certa, dinheiro
em caixa. Dinheiro
integral, pois ele, genro e amigo, não aceitaria nenhuma comissão.
Durante os cinco anos de casado continuou na mesma indecisão, sem
decidir-se por nenhuma das cinco ou seis magníficas situações ou pelas novas
ofertas de seus amigos podres de prestígio.
Não obteve também nenhum contrato oficial para a firma, ia tratar do
assunto invariavelmente no dia seguinte. Firme, porém, manteve-se na recusa de
um lugar de empregado do sogro, considerando a repetida renovação da oferta
quase uma ofensa e uma provocação.
Era um carácter, e tão íntegro,
que jamais pôs os pés no prédio de três andares, conhecendo-o somente de vista,
ao passar pela Ladeira da Montanha.
Ao morrer inesperadamente - ninguém o imaginou jamais enfermo do
coração - surgiram os agiotas com títulos vencidos, empréstimos diversos, vales
rabiscados a lápis, um dinheirão a pagar, do qual o velho José Moscoso, também
ele um carácter, se recusou terminantemente a tomar conhecimento.
Da morte de Aragão Farofa pode-se dizer ter sido chorada pela esposa,
pelos muitos amigos nos bares e pelos seus múltiplos credores horrorizados ante
a pétrea sensibilidade do sogro do falecido.
Não resistiu a viúva ao golpe da perda do esposo adorado, meses depois
era enterrada sob o mesmo mausoléu de mármore. Jamais duvidara ela um minuto
sequer do marido, de sua grandeza, de sua fidelidade, de seu devotado amor.
E, de certa maneira, era Aragão Farofa um óptimo esposo, dedicando
quase toda a tarde à mulher, acarinhando-a, gentilíssimo com ela, criando-a
como criança mimada, nuns dengues de namorado, fazendo-lhe o amor com
constância e sabedoria.
Mas, após o jantar, era um homem livre na noite da Baía, tinha sempre
sérios assuntos políticos e comerciais a resolver, como fazia questão de
explicar à esposa.
Voltava pela madrugada, cheirando a cachaça e a fêmea, o invariável
charuto, o invariável sorriso satisfeito. Nem mesmo o nascimento do filho, a
ligá-lo ainda mais à esposa, modificou a regularidade de seus hábitos
irregulares (na opinião do velho Moscoso).
Acordava ao meio-dia, comia e
bebia do bom e do melhor, reservava a tarde para a esposa e o filho, noite
livre nos bares e castelos, na prosa com os amigos a contar histórias.
Uma só virtude reconhecia-lhe o sogro: jamais fora visto bêbado, sua
resistência ao álcool era assombrosa.
Debruçado em sua mesa, o velho Moscoso fitava o neto e nele revia o
genro de execrada memória. De que adiantara tê-lo trazido menino de dez anos
para a firma, tê-lo encaminhado nos negócios?
Eram os mesmos olhos sonhadores
do pai, o mesmo sorriso contente com a vida, a mesma total indiferença ante os
problemas do escritório, um desastre. Tinha de tomar providências, e sérias, se
não qui sesse ver esfacelar-se, nas
mãos do neto, a firma poderosa e acreditada, obra de sua vida.
E, realmente, ao sentir a proximidade da morte, transformou a firma
individual em sociedade por quotas, limitada, fazendo sócios e interessados
alguns de seus mais antigos e capazes empregados.
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