sábado, março 22, 2014

Seu Vasco era o chefe da firma...
OS VELHOS

 MARINHEIROS


Episódio Nº 36









O primeiro empregado, aquele espanhol Rafael Menendez, entrou como sócio forte e, em suas mãos, por disposição testamentária do velho Moscoso, ficou a completa direcção dos negócios e o futuro da casa. Vasco herdou as quotas do avô que lhe garantiam o controle da firma, a maior parte dos lucros, uma fortuna considerável, e nenhuma responsabilidade.

Viu-se assim livre de encargos, horários e obrigações e cheio de dinheiro. Deixou a Menendez todas as decisões, por uma vez apenas dele discordou e impôs sua vontade: quando o espanhol decidiu despedir o velho Giovanni, um carregador que entrara para a firma quase na fundação.

 Durante mais de quarenta anos transportara na cabeça fardos e fardos, do depósito para as carroças, infatigável, sem um dia de descanso, sem uma queixa, servindo à noite como vigia do prédio, dormindo em cima dos fardos no depósito, abrindo a porta para fregueses retardatários, aqueles que ousavam infringir os horários do velho Moscoso.

Vasco era-lhe grato, pois o negro Giovanni o protegera sempre, desde os dias iniciais e sofridos de sua vinda para o prédio, com dez anos de idade. Contava-lhe histórias à noite, fora embarcadiço na juventude, falava-lhe de mares e portos.

 Nascido João e escravo, fugira para a liberdade do mar, onde a tripulação italiana de um navio o transformou para sempre em Giovanni. Era o único a demonstrar simpatia pela criança prisioneira no sobradão escuro onde o cheiro das especiarias tonteava.

Envelhecera na firma, chegara aos setenta anos e as forças começavam a faltar-lhe, já não dava completa conta do serviço. Menendez resolveu despedi-lo e tomar outro carregador.

Vasco, mesmo após a morte do avô e sua nova situação de chefe, guardara certo temor ante Menendez. O espanhol era um desses homens blandiciosos, a bajular os seus superiores, arrogante e estúpido com os que dele dependiam ou lhe eram inferiores em cargo e importância.

Assumira a direcção da firma com mão de ferro, os negócios marchavam admiravelmente. Mas os empregados queixavam-se, era pior ainda do que no tempo do velho Moscoso.

 Vasco temia o olhar frio e crítico do espanhol, seu jeito de falar, sem gritos, sem exaltação, mas com inflexível decisão. Quando menino e rapaz, no escritório, Menendez não o repreendia como aos demais.

 Levava, porém, Vasco o sabia, ao conhecimento do avô cada erro seu, cada violação do regulamento da casa. Inclusive suas raras escapadas nocturnas, já homem de bigodes, protegidas pelo negro Giovanni.

 Agora Menendez curvava-se ante ele, demonstrando-lhe uma consideração e um respeito reservados antes para o velho Moscoso. No entanto, tentou impor sua decisão qquando Vasco, aflito e indignado, veio discutir o caso do negro despedido.

 Giovanni fora procurá-lo na véspera à noite para contar-lhe o sucedido. Menendez lhe pagara o salário mísero e, sem uma explicação sequer, dispensara seus serviços.

Completara Giovanni os setenta anos, suas pernas já não tinham a segurança de antes, seus braços perdiam o vigor hercúleo. Encontrara Vasco num bar com os amigos, explicou-lhe a situação, os olhos gastos piscando para não chorar, a voz trémula:

- A casa me comeu as carnes, agora quer jogar os ossos fora . . .

- Isso não vai acontecer... - garantiu Vasco. O negro velho lhe agradeceu com um conselho:

- Aquele gringo não presta, seu Aragãozinho. Tome tento com ele senão ele ainda lhe faz uma falseta.

No outro dia Vasco amanheceu no escritório, fato raro. Chamou Menendez para uma conversa, estava sério e formalizado, os empregados começaram a cochichar. No gabinete do velho Moscoso, reservado agora para Vasco, ouvia-se a voz alterada do chefe da firma.

A voz de Menendez ninguém a escutava, jamais um grito ou uma palavra mais alta saíra de seus duros lábios nem mesmo quando insultava nos termos mais agressivos um funcionário faltoso.

Não foi fácil impor sua vontade. Alteava a voz, dizia ser uma desumanidade a despedida do velho Giovanni, não havia direito a transformar em mendigo, no fim da vida, um homem cuja existência inteira fora dedicada ao trabalho, à prosperidade da casa.

Menendez sorria seu sorriso frio, balançava a cabeça concordando, mas mantinha-se em suas posições de princípio: quando um empregado já não dá conta do seu trabalho só resta despedi-lo e botar outro. Essa era a regra do jogo: ele a aplicava.

 Se abrisse excepção para Giovanni, se continuasse a pagar-lhe o ordenado, outros empregados iriam exigir tratamento idêntico, “seu” Vasco (agora Menendez antepunha ao nome do novo chefe a partícula respeitosa, depois de tê-lo tratado durante mais de vinte anos por Aragãozinho) podia imaginar o desastre de tal política? Não, não podia agir de outra maneira.

Vasco não queria saber de princípios, de política a aplicar, apenas achava uma crueldade, uma verdadeira miséria, a despedida de Giovanni. Menendez lavava as mãos: seu Vasco era o chefe da firma, o que ele decidisse seria cumprido.

 Ele devia, porém, pensar duas vezes antes de pôr abaixo uma regra a reger toda a vida comercial: era a própria estrutura da firma que ele ia colocar em perigo. Sem contar não ser apenas de Vasco o prejuízo acarretado, os outros sócios também seriam prejudicados. Não falava por ele, Menendez, sua posição era de defesa de um princípio estabelecido e não de uns magros mil-réis.

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