Um charlatão. Não pisou num navio, nunca... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 30
Caras surgiam a medo nas janelas, rostos ainda cheios de sono. Crianças corriam para a praça onde se juntavam pescadores e operários da Leste. Para eles discursou o comandante pela primeira vez naquele dia memorável.
Aos poucos, de pijama, foram
chegando o velho José Paulo, Adriano, Emílio Fagundes, Rui Pessoa, os demais.
Zequi nha Curvelo, em posição de
sentido ao lado do mastro, ostentava um pedaço de fita auriverde na lapela.
Houve, às dez horas, o costumeiro acto no Grupo Escolar, muito ampliado
porém, com declamação da Ode ao 2 de Julho, de Castro Alves, e novo discurso do
comandante, oração substanciosa, tropos magníficos.
Com Labatut, Maria Quitéria, o Periqui tão,
veio Vasco Moscoso de Aragão dos campos de Cabrito e Pirajá, das batalhas de
Itaparica e Cachoeira, até entrar na cidade de Salvador pelo caminho da Lapinha
e Soledade, curvando-se emocionado ante o cadáver de Joana Angélica tombada na
porta do convento das arrependidas, na Lapa, expulsando de vez e para sempre os
portugueses colonizadores.
Transfigurava-se o comandante, explodindo de indignação contra os lusos
opressores, exaltando a memória dos bravos baianos libertadores da Pátria. Porque
foi no 2 de Julho que a independência se concretizou efectivamente, o sangue
dos baianos dando realidade ao grito do Ipiranga.
Após os hinos, comandou os dois ganhadores, os professores e os alunos,
Zequi nha Curvelo e os habitantes,
num desfile pela rua principal até a praça, sua voz marcial ordenando
“ordinário, marche!”, “direita, volver!”, “atenção, sentido!”.
Os botões da farda brilhavam ao sol, a poeira prateada de um chuvisco
ralo acompanhava a passeata.
Na praça formaram os meninos, mestres e mestras, Zequi nha, os carregadores (Caco Podre já um tanto
vacilante das pernas, começara a beber antes da alvorada), e todos juraram
bandeira.
No fim da tarde, ainda
pronunciou o comandante umas palavras ante a população reunida para assistir ao
arriar dos pavilhões. Essa cerimónia final foi um tanto prejudicada por facto
lastimável: encontrava-se Caco Podre em estado quase de coma, num porre
daqueles, incapaz de uma nota ao clarim. Substituído por um escolar e sua
corneta, não foi a mesma coisa.
Não chegou a empanar-se, porém,
o brilho da festa: as bombas, os rojões de foguetes, os morteiros compensaram.
Misael mantivera-se relativamente sóbrio.
- Sim, senhor ... - comentava depois o velho Marreco ... - foi preciso
que o comandante viesse morar aqui
para termos uma festa de 2 de Julho à altura. É um porreta!
Estava o comandante com sua reputação cimentada; erguia-se, por assim
dizer, como estátua num alto pedestal, na estima e na admiração de seus
vizinhos de Periperi, definitivo e carismático.
Jamais ninguém fora ali tão considerado, tão unanimemente cortejado e
respeitado. A notícia daquele 2 de Julho levou fama de seu nome aos extremos
limites dos subúrbios da Leste Brasileira Não se movia uma palha naquelas
redondezas sem o aviso sábio do comandante.
E, de repente, logo após aquele brilho do 2 de Julho, num luminoso dia
propício às alegrias tranqui las,
desabou a tempestade. Chico Pacheco desembarcou aos gritos na estação, eufórico
e urgente.
- Ganhou a questão ... - pensou Rui Pessoa ao vê-lo descer. Pôs o pé na
plataforma e foi logo alardeando para Rui, para o chefe da estação, os
empregados, os operários a engraxarem os trilhos, para Caco Podre e Misael:
- Eu não dizia? Não avisei? Avisei a vosmicês todos! A mim, nunca me
enganou...
Um charlatão. Nunca pisou num navio, nunca!
Foi de casa em casa, procurou a todos, um por um, até Zequi nha Curvelo recebeu sua visita, generoso porque
superior e triunfante. Levava no bolso uma caderneta negra onde tomara
anotações de quando em vez a abria e consultava. Repetia sua história grotesca,
entre gargalhadas e palavrões contra o comandante:
- Charlatão mais filho da puta. . .
Houve aqueles que lhe deram inteiro crédito e começaram a olhar o
comandante com desprezo, rindo à sua passagem; outros acharam haver exagero de
lado a lado, nem tão heróico Vasco, nem tão verdadeira a história de Chico
Pacheco, esses eram poucos; terceiros não acreditaram em uma só palavra do
relato do ex-fiscal do consumo, continuaram incondicionais ao lado do discutido
capitão de longo curso.
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