sábado, junho 07, 2014

A pedir-me que lhe conte outra história, senhor Comandante.
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)

Episódio Nº 100











Refiro-me ao acontecido aqui em Periperi nestes últimos dias, logo após a passagem do Ano Novo, a entrada festiva de 1961, saudada por mim com esperanças de glória e pecúnia, devido a este meu trabalho, e de tranquila alegria, dados o acordo e a paz reinantes no lar do Beco das Três Borboletas onde, pela tarde, Dondoca acolhia o Meritíssimo, e, pela noite, esse vosso servidor.

Sim, ele descobriu tudo, foi-se água abaixo a vida doce e gratuita. Reina a maior confusão nessas três almas batidas pelo temporal da paixão e do ciúme, pelo vendaval das recriminações e dos desejos de vingança.

Já houve o diabo: gritos e palavrões, insultos, acusações, censuras, desculpas, pedidos de perdão, relações abaladas, corte da mesada e dos presentes, lágrimas, olhares súplices e olhares mortais de ódio, promessas de vingança e até uma surra.

Como historiador cioso de sua condição, devo impor método ao relato, mas não sei se vou consegui-lo, pois tenho o coração despedaçado e uma infernal dor de cabeça. Dor de cabeça devia estar sofrendo o Dr. Siqueira, afinal cresce a frondosa galhada em sua testa e não na minha, o que devia servir-me de consolo.

 Não serve, no entanto. Como consolar-me, se paira sobre mim a ameaça de não vê-la mais, a minha Dondoca, de ter de me afastar do seu caminho, de não mais ouvir seu riso debochado de cristal, sua voz de desmaiado timbre, a pedir-me que lhe conte outra história do senhor comandante.

Foi de repente, se bem as desconfianças andassem no ar, nos olhos e nos gestos do jurista. Referi anteriormente significativas alterações ocorridas na atitude do magistrado em suas relações comigo e com Dondoca.

 O pobre pássaro ferido encontrou um dia o luminar a cheirar-lhe o lençol para ver se nele sentia odor estranho, suor de outro homem.

Tornou-se ríspido e breve em seu trato comigo, olhando-me fixo e severo, sem se abrandar com meus multiplicados elogios, como acontecia outrora, quando, inclusive, louvava-me em pagamento a literatura.

Apesar de haver eu atingido as raias do puxa-saquismo mais total, num esforço considerável, chegando a elogiar um horrendo pijama de listras pelo Meritíssimo inaugurado naqueles dias, presente de Natal de Zepelim.

Nem assim ele desamarrava a tromba. A inquietação nos dominou, a mim e a Dondoca, tomamos precauções extremas, a ponto de usar determinados lençóis e fronhas pela tarde, outros pela noite.

Quanto a mim, evitei acompanhar Dr. Siqueira em suas visitas vespertinas à nossa bem-amada. Antes eu aparecia, ou com ele ou logo após sua chegada, ia filar um cafezinho, dar dois dedos de prosa.

Retirava-me discretamente depois, afinal ele gemia com as despesas, tinha certos direitos, eu não podia passar ali a tarde inteira, a empatar.

Sem falar nas pesquisas históricas, no trabalho a redigir. Pois deixei de aparecer, colocando-me na sombra, indo vê-lo somente à noite, para a prosa na calçada e a prudente comprovação diária: o nobre cultor do Direito com seus movimentos controlados, sob a inflexível batuta de sua digna esposa, dona Ernestina, apelidada de Zepelim pela canalha.

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