A pedir-me que lhe conte outra história, senhor Comandante. |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 100
Refiro-me ao acontecido aqui em Periperi nestes últimos dias, logo após a
passagem do Ano Novo, a entrada festiva de 1961, saudada por mim com esperanças
de glória e pecúnia, devido a este meu trabalho, e de tranqui la alegria, dados o acordo e a paz reinantes no
lar do Beco das Três Borboletas onde, pela tarde, Dondoca acolhia o
Meritíssimo, e, pela noite, esse vosso servidor.
Sim, ele descobriu tudo, foi-se água
abaixo a vida doce e gratuita. Reina a maior confusão nessas três almas batidas
pelo temporal da paixão e do ciúme, pelo vendaval das recriminações e dos
desejos de vingança.
Já houve o diabo: gritos e palavrões,
insultos, acusações, censuras, desculpas, pedidos de perdão, relações abaladas,
corte da mesada e dos presentes, lágrimas, olhares súplices e olhares mortais
de ódio, promessas de vingança e até uma surra.
Como historiador cioso de sua condição,
devo impor método ao relato, mas não sei se vou consegui-lo, pois tenho o
coração despedaçado e uma infernal dor de cabeça. Dor de cabeça devia estar
sofrendo o Dr. Siqueira, afinal cresce a frondosa galhada em sua testa e não na
minha, o que devia servir-me de consolo.
Não serve, no entanto. Como consolar-me, se
paira sobre mim a ameaça de não vê-la mais, a minha Dondoca, de ter de me
afastar do seu caminho, de não mais ouvir seu riso debochado de cristal, sua
voz de desmaiado timbre, a pedir-me que lhe conte outra história do senhor
comandante.
Foi de repente, se bem as desconfianças
andassem no ar, nos olhos e nos gestos do jurista. Referi anteriormente
significativas alterações ocorridas na atitude do magistrado em suas relações
comigo e com Dondoca.
O
pobre pássaro ferido encontrou um dia o luminar a cheirar-lhe o lençol para ver
se nele sentia odor estranho, suor de outro homem.
Tornou-se ríspido e breve em seu trato
comigo, olhando-me fixo e severo, sem se abrandar com meus multiplicados
elogios, como acontecia outrora, quando, inclusive, louvava-me em pagamento a
literatura.
Apesar de haver eu atingido as raias do
puxa-saqui smo mais total, num
esforço considerável, chegando a elogiar um horrendo pijama de listras pelo
Meritíssimo inaugurado naqueles dias, presente de Natal de Zepelim.
Nem assim ele desamarrava a tromba. A inqui etação nos dominou, a mim e a Dondoca, tomamos
precauções extremas, a ponto de usar determinados lençóis e fronhas pela tarde,
outros pela noite.
Quanto a mim, evitei acompanhar Dr.
Siqueira em suas visitas vespertinas à nossa bem-amada. Antes eu aparecia, ou
com ele ou logo após sua chegada, ia filar um cafezinho, dar dois dedos de
prosa.
Retirava-me discretamente depois, afinal
ele gemia com as despesas, tinha certos direitos, eu não podia passar ali a
tarde inteira, a empatar.
Sem falar nas pesqui sas
históricas, no trabalho a redigir. Pois deixei de aparecer, colocando-me na
sombra, indo vê-lo somente à noite, para a prosa na calçada e a prudente
comprovação diária: o nobre cultor do Direito com seus movimentos controlados,
sob a inflexível batuta de sua digna esposa, dona Ernestina, apelidada de
Zepelim pela canalha.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home