Um dia lhe contaria tudo, talvez. |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 99
Encontrou-a furiosa, nem lhe queria
falar. Tentou explicar-lhe, mas ela possuía sua própria versão do acontecido:
por que não lhe dissera logo ter estado todo o tempo a buscar antigo caso de
amor, cujo endereço, naturalmente, fora mudado? Andando com ela nas ruas e
pontes mas de pensamento distante, os olhos esquadrinhando as fisionomias dos
passantes.
- Não pense nisso. Realmente pareceu-me
ver uma pessoa de quem não tenho notícias há quase vinte anos.
- Mulher?
Um dia lhe contaria tudo, talvez. Agora
não valia a pena:
- Que mulher, que nada... Um amigo, um
piloto que serviu comigo durante dez anos em mais de um navio. Éramos íntimos
amigos, como irmãos... Mas ele teve de abandonar a carreira, com a morte de um
parente em Pernambuco, em Garanlmns, uma cidade do interior.
Deixou-lhe uma herança. Nunca mais soube
dele...
Ela devia perdoar a emoção, ao perceber,
entre o povo na ponte, a fisionomia do amigo perdido. Eram como irmãos, tão
ligados que, se um desengajava, desengajava o outro também...
Arrufos de namorados, quanto mais
violentos, mais doce reconciliação propiciam. Saíram os dois da sorveteria de
mãos dadas, a caminho do porto.
Ela chorara um pouco, duas lágrimas que ele
enxugou com o lenço de seda onde, num canto, havia uma âncora bordada. Quando
ele, na porta, lhe tomou da mão para ajudá-la a descer o degrau da calçada, ela
não a retirou depois e, assim andaram, num silêncio mais expressivo que as
palavras, para o cais onde o Ita recebia carga e passageiros.
Da ponte de comando o imediato e o
primeiro-piloto os viram vir, de mãos dadas, em saltitante passo de bale, os
rostos inundados de sol e de ventura.
- O teu comandante está botando as
manguinhas de fora . . . - disse o primeiro-piloto rindo.
Geir Matos, o imediato, perguntou:
- Você já viu alguma vez um comandante
tão compenetrado? Tão comandante? Só mesmo o Américo, um vivedor, podia
descobrir essa pérola...
- Pérola do mar... Do mar do Japão, do
mar da China, das rotas do Oriente...
Os potentes guindastes erguiam sacos de
açúcar, negros estivadores arrumavam os fardos no porão.
Onde o narrador interrompe a
história sem nenhum pretexto, mas na maior aflição.
Perdoem-me os senhores a interrupção e
as falhas por acaso notadas nos últimos capítulos. Se ainda estou escrevendo,
apesar de tudo, é que o prazo concedido pelo Arqui vo
Público para a entrega dos originais (e das cópias dactilografadas) encerra-se
em breves dias.
Mas nem sei o que escrevo - como cuidar do
estilo e da gramática numa hora dessas, quando o mundo ameaça ruir sobre meus
ombros?
Não, não me refiro à bomba atómica ou de
hidrogénio, à guerra fria, aos graves problemas de Berlim, do Laos, do Congo e
de Cuba, a uma plataforma na Lua para de lá se fuzilar o mundo.
Se isso acontecer, acabaremos todos ao
mesmo tempo e mal de muitos é consolo dos pobres. Só desejava saber a hora exacta
para meter-me com Dondoca na cama, morrer junto com ela.
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