sexta-feira, junho 06, 2014

Um dia lhe contaria tudo, talvez.
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

 Episódio Nº 99









Encontrou-a furiosa, nem lhe queria falar. Tentou explicar-lhe, mas ela possuía sua própria versão do acontecido: por que não lhe dissera logo ter estado todo o tempo a buscar antigo caso de amor, cujo endereço, naturalmente, fora mudado? Andando com ela nas ruas e pontes mas de pensamento distante, os olhos esquadrinhando as fisionomias dos passantes.

- Não pense nisso. Realmente pareceu-me ver uma pessoa de quem não tenho notícias há quase vinte anos.

- Mulher?

Um dia lhe contaria tudo, talvez. Agora não valia a pena:

- Que mulher, que nada... Um amigo, um piloto que serviu comigo durante dez anos em mais de um navio. Éramos íntimos amigos, como irmãos... Mas ele teve de abandonar a carreira, com a morte de um parente em Pernambuco, em Garanlmns, uma cidade do interior.

Deixou-lhe uma herança. Nunca mais soube dele...

Ela devia perdoar a emoção, ao perceber, entre o povo na ponte, a fisionomia do amigo perdido. Eram como irmãos, tão ligados que, se um desengajava, desengajava o outro também...

Arrufos de namorados, quanto mais violentos, mais doce reconciliação propiciam. Saíram os dois da sorveteria de mãos dadas, a caminho do porto.

 Ela chorara um pouco, duas lágrimas que ele enxugou com o lenço de seda onde, num canto, havia uma âncora bordada. Quando ele, na porta, lhe tomou da mão para ajudá-la a descer o degrau da calçada, ela não a retirou depois e, assim andaram, num silêncio mais expressivo que as palavras, para o cais onde o Ita recebia carga e passageiros.

Da ponte de comando o imediato e o primeiro-piloto os viram vir, de mãos dadas, em saltitante passo de bale, os rostos inundados de sol e de ventura.

- O teu comandante está botando as manguinhas de fora . . . - disse o primeiro-piloto rindo.

Geir Matos, o imediato, perguntou:

- Você já viu alguma vez um comandante tão compenetrado? Tão comandante? Só mesmo o Américo, um vivedor, podia descobrir essa pérola...

- Pérola do mar... Do mar do Japão, do mar da China, das rotas do Oriente...

Os potentes guindastes erguiam sacos de açúcar, negros estivadores arrumavam os fardos no porão.


Onde o narrador interrompe a história sem nenhum pretexto, mas na maior aflição.


Perdoem-me os senhores a interrupção e as falhas por acaso notadas nos últimos capítulos. Se ainda estou escrevendo, apesar de tudo, é que o prazo concedido pelo Arquivo Público para a entrega dos originais (e das cópias dactilografadas) encerra-se em breves dias.

 Mas nem sei o que escrevo - como cuidar do estilo e da gramática numa hora dessas, quando o mundo ameaça ruir sobre meus ombros?

Não, não me refiro à bomba atómica ou de hidrogénio, à guerra fria, aos graves problemas de Berlim, do Laos, do Congo e de Cuba, a uma plataforma na Lua para de lá se fuzilar o mundo.

Se isso acontecer, acabaremos todos ao mesmo tempo e mal de muitos é consolo dos pobres. Só desejava saber a hora exacta para meter-me com Dondoca na cama, morrer junto com ela. 

Site Meter