quinta-feira, junho 05, 2014

Estava a admirar-lhe Vasco o apetite, quando seu coração quase parou.
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado) 

Episódio Nº 98









Seus olhos suplicantes, a voz de quem ia ter imediatamente uma coisa, decidiram Vasco. Era um pedido louco, como penetrar naquele círculo de desejo e ódio e de lá retirar o denodado pequinês, cuja bravura raiava pela temeridade? Procurou nas vizinhanças um galho caído e com ele armado, a ouvir os comovedores gritinhos de Clotilde, avançou em direcção aos cães como os cavaleiros medievais enfrentavam com sua lança o dragão de sete cabeças, a lançar fogo por todas elas, para obedecer às ordens de sua dama.

Sua inesperada presença causou rebuliço e confusão. O boxer suspendeu a guarda, recuou um passo e disso se aproveitou o grande vira-lata para atacá-lo por detrás. Jasmim, sentindo ser o objectivo daqueles movimentos do comandante, atirou-se para a frente e atropelou o fox, embolando os dois pelos canteiros.

 De tudo isso, aproveitou-se aquele vivíssimo vira-lata menor para arrastar dali a requestada fêmea e levá-la para um beco próximo, mais calmo e favorável ao amor.

Conseguiu o comandante agarrar a ponta da correia de couro e arrancar Jasmim dos dentes do fox que, no final, ficou com ar de tolo a procurar a companheira.

Quando lhe obteve o rastro e partiu em direcção ao beco, era tarde: os mestiços já estavam encomendados.

Clotilde nem agradeceu. Apertava o pequinês com os seios e o rosto, beijava-lhe o focinho magoado, examinava-lhe os ossos, desinteressada por completo da magnífica batalha a continuar entre o boxer e o dinamarquês falsificado, agora alimentada apenas pelo prazer da luta, sem fêmea, como prémio, a lamber amorosa as feridas do vencedor.

Não há nada no mundo sem seu lado positivo. Daquela proeza a excitar o riso dos demais passageiros e a maliciosa curiosidade de uns moleques de rua, resultou a decisão de levar Jasmim de volta ao navio, a cidade estava demasiadamente cheia de tentações e perigos para o pobre inocente.

Assim foi feito e, desta forma, libertou-se Vasco da companhia incómoda e limitadora dos outros companheiros de viagem.

Como já era quase hora do almoço, esperaram a bordo o toque da sineta, Clotilde ocupada em pôr iodo nas marcas de dente deixadas pelo fox numa das pernas de Jasmim.

Foi assim que, pela tarde calorosa, como dois adolescentes, eles andaram na cidade. Ela refeita das caninas emoções matinais, ele elevado em seu conceito pela coragem revelada e pela rapidez em atender a seu pedido.

Depois de rodarem pelas ruas e praças, terminaram numa sorveteria onde ela, glutona, quis provar todas as especialidades da casa, compará-las com os sorvetes de Belém, os melhores do universo em sua opinião.

Estava a admirar-lhe Vasco o apetite, quando seu coração quase parou: lançara os olhos para os lados da Ponte do Imperador (a sorveteria era na Rua da Aurora, viam dali a velha e nobre ponte) e, de repente, enxergou, por entre a multidão a passar, o vulto de uma gorda senhora vestida de preto, um xale na cabeça a esconder os cabelos brancos, levando pela mão uma criança.

Apenas por um fugaz instante vislumbrou-lhe o rosto mas, tinha certeza, era Carol, velha e terna avó, a sorrir para o menino.

Esqueceu-se Vasco da convidada ao lado, de sua condição de comandante em serviço activo, dos sorvetes a pagar, atirou-se porta afora, a correr, em direcção à Rua da Imperatriz por onde desaparecera a fugidia visão. Não mais a encontrou, ainda disse seu nome em voz alta, fazendo voltarem-se alguns transeuntes. Deu-se conta, então, de haver largado Clotilde sozinha na sorveteria, retornou às pressas. 

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