Comandante: salve o pobrezinho, por amor de Deus! |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 97
Não o entregara à polícia, nada falara
sobre o assunto, nem sequer com os fazendeiros logrados. Aquela censura
referia-se à peça de biscuit. Onde conseguiria outra assim tão formosa para
levá-la de presente à esposa?
Vários outros desembarcaram igualmente,
o Ita ia deixando e recebendo passageiros em cada porto. Desceu inclusive a
moça morena, cuja família a esperava no cais. Para ela a viagem fora curta, e
ali mesmo, na chegada, apresentava o atlético bancário cearense
aos pais e tias.
No fim da tarde viria dar-lhe adeus do
ancoradouro, seus olhos acompanhariam saudosos a esteira do navio.
Quando o comandante, após assinar papéis
trazidos pelo imediato, ficou livre e procurou Clotilde, já ela estava no cais
com outros passageiros.
Saíram num grupo grande. Vasco não
escondia sua decepção.
Esperava tê-la a sós consigo, naquela
manhã e no começo da tarde, pois necessitava voltar para bordo relativamente
cedo, outros papéis a assinar.
E via-se cercado pela algazarra de
famílias inteiras, com cachos de crianças, todas a fazerem perguntas as mais
tolas e absurdas, como se ele fosse uma espécie de enciclopédia universal,
conhecendo não só as ruas, os restaurantes, os bares, como os preços da praça,
inclusive os de fralda de recém-nascidos.
Não podia seguir o exemplo dos
casadinhos de novo: esses agiam como se estivessem a sós no paraíso, como se os
demais não existissem, só faltavam deitar num banco de jardim e ali mesmo, na
vista de todos, chegar às últimas consequências.
Beijinhos, apalpadelas, carícias, mas
tudo aqui lo lhes era permitido pelo
Estado e pela Igreja, haviam passado pelo juiz e pelo padre.
Vasco arrenegou aquela primeira parte do
passeio pela cidade. Sobretudo quando Jasmim, o único defeito sério que ele
enxergava em Clotilde, arrancou-se das mãos da dona para participar,
evidentemente sem nenhuma possibilidade de êxito, da concorrência estabelecida,
em frondosa praça do centro, em torno da conqui sta
de uma cadela em cio, uma fox de regular tamanho e pouca pureza de raça.
A não ser que Jasmim contasse com sua
nobreza oriental, sua exótica beleza a estontear a cobiçada fêmea, três vezes
mais alta do que ele, como imaginar competir com um boxer de dentes
arreganhados, um fox ao parecer com direitos de marido e disposto a
defendê-los, e dois vira-latas?
Um deles enorme, tendo nas veias sangue
de dinamarquês, a rosnar para o boxer, o outro com o ar mais malandro do mundo,
um vira-lata dos mais totais, de olho cínico e focinho simpático.
Este último e o fox com ar de marido
estavam na expectativa, esperançosos no resultado da batalha a travar-se entre
os dois maciços campeões, o boxer e o enorme vira-lata.
O mais provável era um empate, com liqui dação dos dois, os nomes riscados da lista de
pretendentes. E tanto o fox quanto o vira-lata menor mediam-se, preparando-se
já para a segunda luta, a decidir da posse da cadela.
Quanto a esta, parecia encantada com
aquela disputa de seus favores. Animava a todos, mesmo o marido, uma devassa.
A situação mudou fundamentalmente quando
Jasmim resolveu inscrever sua candidatura, fazendo-o num salto espectacular a
situá-lo em meio aos contendores.
Voltaram-se os quatro para o novo candidato, a
rosnar. A cadela sorriu-lhe vaidosa, animando-o. Por um breve momento Vasco
teve a ilusão optimista de um rápido e definitivo estraçalhamento do pequi nês pelo boxer e pelo mestiço, com a eficiente
ajuda do fox e do pequeno vira-lata.
Mas não aconteceu. Aqueles apaixonados
pareciam donos do tempo, não se decidiam a começar, ficavam a rosnar, a mostrar
os dentes, de quando em vez uns latidos. Aliás quem mais latia, agressivo, era
Jasmim.
Quando o viu em meio à roda, entre os
quatro rudes lutadores, Clotilde ameaçou um chilique. Escaparam-lhe dos lábios
uns gritinhos histéricos, estendeu os braços, dizendo “Jasmim, Jasmim” aos
arrancos, deixou-se cair num banco quase a desmaiar. Voltou-se para o
comandante:
- Salve o pobrezinho, pelo amor de Deus!
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