Mia Couto |
E SE OBAMA
FOSSE AFRICANO?
Volto hoje a um texto que coloquei a
Mia Couto, que lá em Moçambique também vibrou com essa
eleição, escreveu este lindo texto em cima do acontecimento, pleno de emoção
mas, o que me faz voltar a ele é um outro documento que Mia Couto anexou ao seu,
da autoria do escritor camaronês Patrice Nganang, intitulado “E se Obama fosse
camaronês”, porque este não perdeu a actualidade e sugeriu a Mia Couto uma série
de perguntas sobre a hipótese “E se Obama fosse africano e concorresse à presidência
de um país africano?”.
Nada pode ser visto fora do contexto social em que os
factos ocorrem mesmo quando se trata da eleição de Obama que deve ser
considerada uma vitória e um avanço para a humanidade.
Pelo que se percebe dessas perguntas é que a vitória
de Obama foi uma vitória de um país que se chama Estados Unidos da América e
que não teria ocorrido, estabelecidos todos os paralelismos, num país africano
onde dominam os déspotas e os racistas que não o povo, simples e hospitaleiro que tive oportunidade de conhecer e conviver, primeiro o povo Luena, no
leste angolano e mais tarde na cidade da Beira em Moçambique.
MIA COUTO
Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu
fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da
madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor.
A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo
estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo Presidente
norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da
esperança que se reerguia, liberta dentro de nós. Meu coração tinha votado,
mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem
dimensões. Ao sair à rua a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros
e brancos respirando, comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória
de Obama não foi de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos
americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os EUA não nos
dariam motivo para festejarmos.
Nos dias seguintes fui colhendo as reacções eufóricas
dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos
comuns queriam testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota,
com algumas reservas, de mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase
todos chamavam a Obama de “nosso irmão”. E pensei: estarão todos estes
dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente
politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos apenas
nos outros não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias.
Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos
chegam desse outro lado do mundo.
Foi então que me chegou às mãos um texto de um
escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: “E se Obama fosse camaronês?”
As questões que o meu colega dos Camarões levanta
sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte
hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência de um país
africano? São estas as perguntas que gostaria de explorar neste texto.
E se Obama fosse um africano e candidato a uma
presidência africana?
1º - Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um
qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para
prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que
esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa
se tomarmos em conta os anos de permanência de um mesmo presidente em África.
Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabué, 28 na Guiné Equatorial, 28
em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões e por aí fora perfazendo uma quinzena
de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente.
Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs para além do
veredicto popular.
2º - Se Obama fosse africano o mais provável é que,
sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer
campanha. Far-lhe-iam, por exemplo, como no Zimbabué ou nos Camarões: seria
agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-lhe-ia retirado o
passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a
democracia.
3º - Se Obama fosse africano, não seria sequer
elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis
restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a
descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo
questionado no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente,
descobriram que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por
mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo
tinha governado “ilegalmente”.
Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso
Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será
interdito de fazer política e assim, o regime vigente, ver-se-á livre de um
opositor.
4º - Sejamos claros, Obama é negro nos EUA. Em África
ele é mulato. Se Obama fosse africano veria a sua raça ser-lhe atirada contra o
seu próprio rosto. Não que a cor da pele seja importante para os povos que
esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites
predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por “um não autêntico
africano”.
O mesmo “irmão negro” que hoje é saudado como o novo
Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo o representante dos
outros, dos de outra raça, de outra bandeira ou de nenhuma bandeira.
5º - Se fosse africano, o “nosso irmão” teria que dar
muitas explicações aos moralistas de serviço quando pensasse incluir no
discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais, pecado mortal
para os chamados advogados da “pureza africana”. Para estes moralistas – tantas
vezes no poder, tantas vezes com poder – a homossexualidade é um inaceitável
vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
6º - Se ganhasse as eleições, Obama teria
provavelmente de sentar-se à mesa das negociações e partilhar o poder com o
derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países
africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado – a vontade do
povo expressa nos votos.
Nesta altura, estaria Obama sentado à mesa com um
qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos
ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais quando
estes não correm bem aos ditadores.
Inconclusivas conclusões:
Fique claro: existem excepções neste quadro
generalista. Sabemos todos de que excepções estamos a falar e nós mesmos,
moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.
Fique igualmente claro: todos estes entraves a um
Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por
elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.
A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que
os africanos – as pessoas simples e os trabalhadores anónimos – festejaram com
toda a alma a vitória americana de Obama mas não creio que os ditadores e
corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos
experimentaram no passado dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama
exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios
dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados
africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.
No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os
noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África.
No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana,
África continuava a ser derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada
de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos
estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Noutros a
desistência e o cinismo.
Só há um modo de celebrar Obama nos países africanos:
é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso
continente. É lutar para que Obamas africanos também possam vencer e nós,
africanos de todas as etnias e raças venceremos com esses Obamas e celebraremos
em nossas casas aquilo que festejamos em casa alheia.
Jornal “Savana” 14 de
Novembro de 2008
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