Libanês de nascimento e sangue... |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 14
Tinha um exemplo à mão na mesa de póquer do
Hotel Coelho, em ilhéus: alma destemida, audaz, um águia na inteligência,
Álvaro Faria, se qui sesse, poderia
ser um coronel como o irmão, dono de prédios e fazendas, milionário.
Em vez disso, não passava de um
troca-pernas, um vadio, sem eira nem beira, vivendo ao deus-dará. Não fossem a
mesa farta do mano João, a sorte no jogo, motivo de dúvidas e suspeitas, e a
malícia para conceber e executar trampolinices, passaria fome.
Até então Fadul apenas trabalhara num
afã desesperado de
burro de carga, cruzando brenhas,
enfrentando riscos, as serpentes, as febres, as ameaças de criminosos, frios
assassinos.
Naquele comércio andejo, o pau-de-fogo,
presente do capitão Natário, era tão importante quanto a mala repleta de
berliques e berloques.
Ainda não enriquecera, longe disso. Nem
sequer se estabelecera, como decidira fazer, com casa de negócio num dos vários
povoados que brotavam no rastro do cacau, nas encruzilhadas das fazendas, ao
passo das tropas e tropeiros.
Sem embargo, não podia se queixar:
estava juntando seu pé-de-meia. Sobretudo depois que iniciara a prática da
agiotagem.
Multiplicavam-se as estrelas na lonjura
do céu. Fuad Karan,
que em Itabuna lia livros em árabe e em
português, cidadão ilustrado, mais instruído do que meia dúzia de advogados - responsável pelo apelido de Grão-Turco que
inventara ao ver Fadul rodeado de raparigas no cabaré - lhe afirmara não serem
essas estrelas aqui vistas as mesmas
que cintilam no céu do Oriente onde eles haviam nascido.
O
Grão-Turco não duvida mas não consegue estabelecer a diferença: estrelas são
todas parecidas, belas e longínquas
pedras preciosas, bastaria uma delas
para fazer a fortuna
de um filho de Deus.
Quanto à lua, reflectida nas águas do
rio, é a mesma, aqui e lá: medalha de
ouro fosco, gorda e amarela, com São Jorge cavalgando seu cavalo na faina do
dragão.
O
Oriente citado por Fuad, a terra natal, perdera-se na distância, para
reencontrá-la seria preciso varar o mar de lado a lado no bojo dos navios.
São outras as estrelas, as frutas
também, não lhe fazem falta:
prefere os cajás às tâmaras e de
estrelas está bem servido.
Distante e esquecida, a terra natal.
Fadul Abdala, o Grão - Turco das putas, o Turco Fadul das
casas-grandes, seu Fadu das míseras choupanas, sabe que veio para ficar, não
trouxe passagem de volta.
No lugre de imigrantes chorou todas as
lágrimas, não restou nenhuma. Não mudou apenas de país e de paisagem, mudou de
pátria.
Libanês de nascimento e sangue, chamam-no
turco por ignorância; se soubesse ver e constatar, proclamaria aos quatro ventos
sua fé de grapiúna.
A pátria de um cidadão é o lugar onde
ele sua, chora e ri,
onde moureja para ganhar a vida e
construir casa de negócio e residência.
Sozinho com a noite e as estrelas
naquele pouso desconhecido para onde o conduziu a mão de Deus, Fadul Abdala reconhece
e adopta a nova pátria.
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