Deus fizera-o perder o norte... |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 13
Deus dividiu a vida Fadul aprendera a crer e a confiar em Deus com seu tio Said Abdala, sacerdote maronita de conselho e apetite celebrados.
Vinham de longe consultá-lo, traziam-lhe
tâmaras e uvas que ele comia às mãozadas enquanto resolvia pendências e
anunciava o volume das colheitas; o mel das frutas escorria-lhe pela comprida barba
negra.
Mudara muito naqueles qui nze anos, o tio não o reconheceria,
constatou Fadul saboreando os cajás um a
um; mudou por fora e por dentro, prefere os cajás às tâmaras e as uvas não lhe
fazem falta, bastam-lhe as jacas, de preferência as moles.
Voltara a nascer naquelas brenhas, o
menino vestido com o djelabá ficara para sempre do outro lado do mar.
Deus dividiu a vida dos homens entre a
obrigação e o prazer, o choro e o riso. O prazer sem medida de estar ali,
chupando cajás na brisa do fim da tarde, escutando passarinhos, vendo-os voar, jóias
do escrínio do Senhor.
Repousando da labuta das últimas semanas, do
infinito caminhar, dos perigos de todos os instantes, mascate não conhece
domingo ou dia santo.
Deus fizera-o perder o norte para que tivesse
um dia de descanso, folga para o corpo e a alma.
Por que não permanecer ali para sempre,
naquele vale idílico,
igual aos animais que se aqueciam ao
sol, estirados sobre as
pedras, calangos e teiús — aprendera com
os alugados a comer carne de teiú e a saboreá-la, lambendo os beiços e os
dedos.
Sobrava comida, fartura de caças e de
frutas, jacas olorosas, a
água pura descia das nascentes, o
paraíso. Fadul Abdala riu um riso grosso e estrepitoso, no descompasso de seu
tamanho, assustando papagaios e lagartos: nesse paraíso faltava o principal que
era a mulher.
Pensando em mulher, pensou em Zezinha do
Butiá àquelas
horas botando-lhe corpos em Itabuna. Também
não podia exigir que ela trancasse a cadeado o xibiu - um abismo! - apenas porque lhe deixara, num laivo de
desvario, duas cédulas de dez mil-réis e um espelho emoldurado para nele
contemplar-se, suspirosa.
Suspirosa? Ela ria-lhe na cara:
-
Turco de uma figa, comedor de cebola crua!
-Turco,
não, dobre a língua. Grão-Turco, minha odalisca,
teu senhor e teu escravo... - era dado a galanteios, pena que a pronúncia
não ajudasse.
2
Gostou tanto do lugar que nele
pernoitou. Recolheu gravetos,
acendeu fogo para espantar as cobras,
vestiu as ceroulas e a
camisa, estendeu-se sobre as folhas
secas. Tardou a adormecer, pensando. Na margem do rio, anunciando a lua, o
sapo-cururu cantou.
Chegado ao Brasil há qui nze anos, Fadul viera para trabalhar
e enriquecer. Enriquecer é a meta de
todos os homens, para alcançá-la Deus lhes dá alma e inteligência. Uns cumprem
à risca o mandato do Senhor, ganham dinheiro e se estabelecem, outros não
conseguem; alma pequena, inteligência curta ou tão-somente pouca disposição
para o trabalho, preguiça, malandrice.
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