Muitos acabaram presos, acossados como bichos... |
Recordando
os
os
Pides.
A mente dos polícias da PIDE (Polícia de Investigação e Defesa do Estado), especialmente daqueles que já tinham atingido a categoria de inspectores, com provas dadas e vocação comprovada, como o da nossa história, era qualquer coisa que talvez os especialistas do foro psi
O mundo, para eles, era estreito e muito
concreto. O quadro de valores definia-se apenas pela fidelidade ao regime e o
ódio aos comunistas, e quando a revolução aconteceu em 1974 esse mundo desabou.
Apavorados, ficaram sem perceber nada do
que tinha acontecido. De espírito covarde como eram, alimentados por uma
autoridade e força que não era deles, ficaram vazios.
Fugir, esconder, foi a única reacção.
O “nosso” inspector, o único que
conheci, vivia na cidade da Beira, em Moçambique, com a mulher e duas filhas e,
aproveitando-se da lei, transferia mensalmente para Portugal uma pensão (de
valor máximo) para três familiares (pais e sogro, presumo) que declarou estarem
a seu cargo, no total de 11 contos de réis, mais ou menos correspondente ao seu
próprio ordenado de funcionário público...
A Autorização para fazer essa transferência
através do Banco de Moçambique, com a duração de seis meses, tinha-lhe sido
concedida pela delegação de Quelimane, cidade onde ele exercia funções antes de
ser transferido para a Beira (sinal de promoção…)
Quando aqui
chegou, e embora a Autorização de Transferência que estava na sua posse fosse
ainda válida por mais três meses, requereu de imediato uma nova Autorização de
Transferência.
Os Serviços da Delegação da Inspecção de
Crédito e Seguros da cidade da Beira, de que eu era responsável, indeferiram o
pedido com o argumento de que “o requerente estava na posse de uma Autorização
que lhe tinha sido concedida pela Delegação de Quelimane cuja validade só
terminaria dentro de três meses devendo, então, pedir a sua renovação por um
novo período de seis meses”.
Isto mesmo lhe foi comunicado num ofício que
eu próprio assinei na qualidade de Delegado da Inspecção e que caiu em cima da
secretária dele como uma autêntica bomba.
Que afronta, que ousadia, que temeridade,
que falta de respeito!... dizer “não” ao
senhor todo-poderoso Inspector da Pide?
A raiva, a ira, a incredulidade, deixaram-no
possesso, o sangue invadiu-lhe o rosto, os gestos desabridos, pega
imediatamente no telefone e quando me ouve, a sua voz em altos berros dispara
em todas as direcções.
Na rua onde os seus Serviços funcionavam
as pessoas ouvem com algum temor e param curiosas, os seus funcionários devem
ter-se escondido debaixo das secretárias e eu afastei o telefone do ouvido para
proteger o tímpano.
Fiquei em silêncio, não disse uma
palavra, apenas recordo algumas ameaças… “que ia participar de mim”, “que me
embrulhava numa folha de papel de 25 linhas”… e de mais não me lembro porque
deixei de o ouvir.
À
minha frente, um senhor que estava a atender, fitava-me com perplexidade sem
saber o que pensar. Quando pousei o auscultador, olhei-o e disse-lhe:
“desculpe, isto são ossos do ofício”.
Só uma mente completamente distorcida podia
ter um comportamento assim. Em que mundo aquele senhor vivia?
Como era possível reagir daquela maneira
a uma decisão de Serviços da Administração Pública que era obviamente legal
para além de que fazia todo o sentido?
Não percebia ele que atender o seu
pedido teria sido uma evidente irregularidade, uma infracção da lei?
Perguntei a mim próprio, muitas vezes,
porque reagiu aquele homem daquela maneira e naqueles termos e a resposta só
podia ser uma:
-
No exercício de uma autoridade baseada na violência arbitrária, prepotente, no
desrespeito total pelos direitos e dignidade dos seus concidadãos dos quais só
aceitava a obediência e o temor, perseguido por todos os fantasmas que
habitavam o seu espírito, aquele homem vivia no limiar da loucura.
Os tempos passaram. Nada mais aconteceu depois daquele
surrealista telefonema até que um dia, sem se fazer anunciar como era hábito
daquela gente, dei por mim, quando levantei a cabeça da secretária, com o
senhor inspector à minha frente no meu gabinete de trabalho.
Uma das prerrogativas daqueles “defensores do regime”
era, querendo, o de entrarem na casa das pessoas, nos locais de trabalho, em
qualquer lado, de surpresa, sem avisarem. Como polícias muito especiais que
eram, o factor surpresa, fora de qualquer processo de averiguação que o
justificasse, constituía uma espécie de “marca” identificadora da sua
autoridade e poder.
Com ar altivo, o peito cheio, não se sentou, olhava-me
de pé, de cima, em sinal de superioridade e de dominação… “estou aqui para lhe mostrar que não estou zangado… aqui tem – e acompanhou as palavras com os gestos –
dinheiro estrangeiro que foi apreendido, para fazer entrega dele no Banco de
Moçambique…” disse, enquanto colocava em cima da secretária um
maço de notas e saíu com o seu avantajado corpanzil numa retirada de estilo,
sempre para impressionar…
Os meses continuaram a passar e desembocaram na
Revolução do 25 de Abril em Portugal, com cravos distribuídos no Rossio,
coração de Lisboa, que os soldados enfiaram nos canos das espingardas em imagens
que correram mundo, no que foi a extrema humilhação para os Srs. Inspectores da
PIDE, zelozos defensores do regime.
Não tiveram oportunidade de mostrar a valentia e a
coragem de que se fizeram portadores durante tantos anos e acabaram presos,
perseguidos, muitos acossados como bichos pela população, mãos nas paredes,
pernas abertas, calças arriadas, cuecas à mostra… era a hora do reviralho!
Passava um pouco das 10 da manhã quando a notícia me
chegou, hora histórica para mim e para todos os portugueses aquela em que
souberam da revolução. A vida de todos os portugueses iria dar uma cambalhota, o
curso ia mudar mas ali, nas colónias, muito mais...
Fui até à Praça do Município onde era enorme o
entusiasmo. Faziam-se discursos, davam-se gritos à liberdade, muito
provavelmente por elementos de um núcleo de oposição ao regime de
Salazar/Caetano que vivia clandestinamente na cidade.
Encostei-me a uma coluna e observei o ambiente de
alegria e de vitória que se vivia na Praça e pensei, lembro-me bem de ter
pensado, que muitas daquelas pessoas, quase todas brancos, portugueses, não
tinham muitas razões para estarem alegres.
Era apenas o momento de euforia a que alguns, que
esperaram tantos anos, tinham direito. Aquela, no entanto, não era a terra
deles, era o local errado e o equívoco ia finalmente desfazer-se... O parto de
um novo país iria ser para todos muito doloroso…
Samora Machel disse: Portugal não nos deu a
independência, nós é que ganhámos a guerra!
Esta era a mensagem que ia ao encontro do orgulho dos
moçambicanos mas que escondia uma outra, implícita, lógica e perigosa: os
portugueses, colonialistas ou não, eram considerados “despojos” de guerra,
restava-lhes abandonar o território.
Para os moçambicanos ficou um país vazio de actividade
económica, palco para uma futura guerra civil, também conhecida como a guerra
dos Dezasseis Anos entre o Exército de Moçambique, da Frelimo, e a Renamo,
Movimento Político da Oposição a Samora Machel.
À tarde o telefone tocou. Era um amigo meu, antigo
colega do tempo do Liceu e da Faculdade, pessoa de confiança do regime que superintendia
numa empresa do Grupo Entreposto, de Champalimaud económico importante daquela
região.
Trabalhava no edifício contíguo ao meu e pelo grau de
confiança e amizade que tínhamos pedia-me que fizesse um favor ao Sr. Inspector
que estava ali ao pé dele, em desespero, porque precisava com rapidez de uma
Autorização de Transferência para mandar para Portugal a mulher e as filhas.
- “Diz ao Sr.
inspector que eu trabalho exactamente no mesmo local que ele conhece e se
pretende alguma coisa de mim só tem que vir até cá… não precisa de te
incomodar…”
Passados poucos minutos, o senhor que tinha sido até
ao dia anterior o todo-poderoso inspector da Pide da cidade da Beira, entrava
no meu gabinete, cabeça baixa, peito para dentro e ali ficou até eu o mandar
sentar, em silêncio, incapaz de me olhar nos olhos, não fosse qualquer gesto ou
palavra desagradar-me… era a segurança da família que estava em causa e ele não
podia correr riscos.
- “Sr.
Inspector - disse-lhe eu – se me viesse fazer este pedido há dois dias atrás
dir-lhe-ia para se dirigir aos balcões, preencher o impresso e aguardar que a
Autorização corresse os seus trâmites no Serviço até estar despachada para lhe
ser entregue, mas o senhor, neste momento, é um homem derrotado a atravessar o
pior momento da sua vida, é uma pessoa frágil e eu vou atender de imediato o
seu pedido”.
Chamei uma funcionária e dentro de minutos ele
abandonava a Delegação com o papel pretendido sem que eu me lembre de ter
ouvido um obrigado… mas talvez o tenha dito… baixinho… já passaram tantos anos…
uma vida.
No outro dia viajou para Lourenço Marques, hoje
Maputo, preso, como todos os Pides que exerciam funções em Moçambique.
Numa contra-revolução em 7 de Setembro, tentativa
frustrada de interromper o processo de independência em curso e reconduzir
novamente o poder aos brancos numa solução tipo Ian Smith, como na vizinha
Rodésia, fugiram da cadeia e refugiaram-se na África do Sul onde muitos se
exilaram porque Portugal, naquela altura, não era também para eles uma terra
recomendável…
Depois, com os anos, tudo acabou por esquecer… o tempo
tudo apaga… os acontecimentos seguiram o seu rumo de forma inexorável, Portugal
“digeriu”, como por encanto, meio milhão de retornados regressados à
“trouxe-mouxe” ao ponto de partida e que, paradoxalmente, acabaram por ser eles
um motor de desenvolvimento para um país adormecido pela guerra e a ditadura.
Só eu não apaguei da minha memória esta figura bizarra
do Sr. Inspector da Pide que se cruzou comigo na cidade da Beira em Moçambique mas que, a pouco e pouco, se vai esbatendo das minhas lembranças.
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