quarta-feira, julho 09, 2014

Rompera-se por dentro o velho marinheiro
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 127









Os passageiros apontavam para Vasco, riam, olhando-o de esguelha. Clotilde voltou-lhe o rosto, andou para a escada a caminho dos parentes. Mas ao pisar no primeiro degrau, parou, lançou-lhe outro olhar de desdém, tirou do dedo a aliança, atirou para onde ele estava.

Rolou o anel no tombadilho, caiu num ruído sobre ferros. Turvou-se a vista de Vasco, segurou-se à amurada. Vacilante, foi andando para a escada, quando um braço tomou do seu, a ajudá-lo:

- Está sentindo alguma coisa, Comandante?

Era Moema, a mameluca, e entre toda a multidão no navio e no cais, só ela não ria, e lhe dizia:

- Se importe não...

Nem agradeceu, a voz perdida, perdida a alegria de viver, a crista caída. Aproximava-se da escada, quando novamente o interromperam, era o representante da Costeira com os papéis a assinar. Rabiscou seu nome, prevalecia seu senso de dever.

- Tem quarto reservado para o senhor no Grande Hotel. O navio sairá amanhã às 17 horas, tem uma cabina de primeira separada para o senhor - esforçava-se por conter o riso.

Não respondeu, começou a descer a escada junto com os últimos passageiros. Na terra desconhecida, marinheiros, oficiais dos navios atracados, gente da Alfândega, dos armazéns do porto, e muitos e muitos vindos da cidade admiravam o Ita amarrado ao cais com todas as amarras.

 Ficaria assim até o dia seguinte, na hora da partida. Toda a cidade teria tempo de vir ao porto apreciar o inédito espectáculo.
Apontado por uns e outros, acompanhado pelo riso infindável, Vasco aproximou-se de um carregador:

- Pode me dizer onde encontro uma pensão barata?

- Só se for a de dona Amparo, mas fica um bocado longe...

- Pode me indicar o caminho?

- Se quiser levo sua mala, e lhe ensino... O senhor dá o que quiser.

Do alto da ponte de comando, o imediato e os pilotos viram desaparecer na esquina de uma rua o comandante, as costas curvadas, o passo trôpego, como um náufrago perdido, de repente um ancião.

Prosseguia o riso pelo cais.


Onde a verdade é arrancada do fundo do poço pelos furiosos ventos desatados



Por volta das cinco horas da tarde, chegou Vasco à pensão de dona Amparo, cordial cabocla desdentada. Obteve um quarto com uma rede e a simpatia de dona Amparo, a quem o jeito de Vasco recordava prestimoso conhecido do Acre.

 Perguntou-lhe se estava enfermo. O calor era asfixiante, Vasco sentou-se na rede, ficou a pensar. Enfermo? Não, estava vazio, isso sim, não conseguia sequer colocar ordem em suas ideias, nos problemas a resolver, referentes à sua volta à Bahia, a venda da casa de Periperi, a compra da outra na Ilha de Itaparica.

 Ia um silêncio pela rua pesada de mormaço, mas ele continuava a ouvir aqueles sons de gargalhada, nunca mais deixaria de ouvi-los, ressoavam em seu peito.

 E uma dor aguda e eterna. Daquela vez não tinha jeito, Comandante Georges Dias Nadreau: rompera-se por dentro o velho marinheiro, jamais voltaria a erguer-se sua crista. Dobrado à tristeza, era o riso da cidade. 

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