quarta-feira, setembro 17, 2014

Assomou à porta o vulto de um cigano
TOCAIA GRANDE
(JORGE AMADO)


Episódio Nº 54



















 - Inda não chegou. Se quiser, deixe a encomenda: quando o Capitão aparecer entrego a ele.

 - Vou deixar a encomenda e se vosmicê me der licença deixo a carga também. Não sou doido pra largar os caçuás no tempo, na cara dos ciganos. Compras que o coronel Boaventura mandou de Ilhéus. É pra festança -  Explicou.

O turco tirou a limpo o boato que corria:

 - Quer dizer que dessa vez o doutor vem mesmo, não é?

 - De certeza.

 - Que doutor? — Valério Cachorrão meteu o bedelho na conversa. Viera com Maninho matar o bicho e comprar uma lasca de carne-do-sertão para chamuscar na brasa debaixo do palheiro, comer com farinha e rapadura.

 - O filho do Coronel que é doutor advogado. Andava fora faz bem seis meses.

 - Por onde andava? Fazendo o quê?

 - No Rio de Janeiro, gozando a vida.

 - E faz ele muito que bem. Ouvi dizer que valente. Prosseguiu Valério Cachorrão sempre pronto para uma conversa de valentões e arruaças.

 - Teve a quem sair - Interveio Maninho a par dos acontecimentos:

 - O coronel Boaventura nunca soube a cor do medo.

 - E que, além de um colhudo, é um pai-d’égua.

Coube ao pardo Pergentino confirmar:

 - Também nesse particular saiu ao pai.

Assomou à porta o vulto de um cigano, o braço passado na cintura de uma quenga. A quenga todos os presentes conheciam: Guta, cabrocha boa de cama, destemida e zombeteira, presunçosa.

Se o tráfego de viandantes foi pequeno, imenso foi o campo de estrelas na noite de bruxedo. A lua cheia fincada sobre o rio iluminou a extensão do vale de Tocaia Grande: as colinas, o descampado, o magro casario, o pouso dos tropeiros e, na margem oposta, as carroças dos ciganos e a ronda dos burros e cavalos.

Maria Gina reconhecia a estrada dos príncipes e das fadas: pisava no luar derramado sobre as pedras ao atravessar a correnteza à procura do cigano que recolhera o sol no fundo do tacho.

Com certeza, certa e absoluta, fora ele quem desatara a lua e semeara as estrelas no infinito. Por que não a chamara para ajudar no pastoreio? Tinha de encontrá-lo, assim devia ser, estava destinado e há muito ela o aguardava.

Alguém fizera referência à chegada da corte real da Babilónia e aos quatro reis fugidos do baralho. Arengas confusas e contraditórias, pedaços de adivinhas, uma excitação repentina incendiando a tarde.

Maria Gina com nada se espantava, habituada a ver visagens, a ouvir vozes, a tratar com assombrações: o lobisomem, a mula-sem-cabeça, o gigante Adamastor, a senhora dona Sancha coberta de ouro e prata e o rei Salomão com o manto de estrelas.

Tímida e pacata, avelhantada, vivia no seu canto, enrolada em trapos, nos lábios um sorriso medroso e permanente, falando sozinha ou conversando sabe Deus com quem - ela certamente saberia mas guardava reserva, e, quando perguntavam, punha um dedo sobre os lábios em sinal de segredo e o sorriso se ampliava.

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