Assomou à porta o vulto de um cigano |
TOCAIA
GRANDE
(JORGE
AMADO)
Episódio
Nº 54
- Inda não chegou. Se
-
Vou deixar a encomenda e se vosmicê me der licença deixo a carga também. Não
sou doido pra largar os caçuás no tempo, na cara dos ciganos. Compras que o
coronel Boaventura mandou de Ilhéus. É pra festança - Explicou.
O turco tirou a limpo o boato que
corria:
-
Quer dizer que dessa vez o doutor vem mesmo, não é?
-
De certeza.
-
Que doutor? — Valério Cachorrão meteu o bedelho na conversa. Viera com Maninho
matar o bicho e comprar uma lasca de carne-do-sertão para chamuscar na brasa
debaixo do palheiro, comer com farinha e rapadura.
-
O filho do Coronel que é doutor advogado. Andava fora faz bem seis meses.
-
Por onde andava? Fazendo o quê?
-
No Rio de Janeiro, gozando a vida.
-
E faz ele muito que bem. Ouvi dizer que valente. Prosseguiu Valério Cachorrão
sempre pronto para uma conversa de valentões e arruaças.
-
Teve a quem sair - Interveio Maninho a par dos acontecimentos:
-
O coronel Boaventura nunca soube a cor do medo.
-
E que, além de um colhudo, é um pai-d’égua.
Coube ao pardo Pergentino confirmar:
-
Também nesse particular saiu ao pai.
Assomou à porta o vulto de um cigano, o
braço passado na cintura de uma quenga. A quenga todos os presentes conheciam: Guta,
cabrocha boa de cama, destemida e zombeteira, presunçosa.
Se o tráfego de viandantes foi pequeno,
imenso foi o campo de estrelas na noite de bruxedo. A lua cheia fincada sobre o
rio iluminou a extensão do vale de Tocaia Grande: as colinas, o descampado, o
magro casario, o pouso dos tropeiros e, na margem oposta, as carroças dos
ciganos e a ronda dos burros e cavalos.
Maria Gina reconhecia a estrada dos
príncipes e das fadas: pisava no luar derramado sobre as pedras ao atravessar a
correnteza à procura do cigano que recolhera o sol no fundo do tacho.
Com certeza, certa e absoluta, fora ele
quem desatara a lua e semeara as estrelas no infinito. Por que não a chamara
para ajudar no pastoreio? Tinha de encontrá-lo, assim devia ser, estava
destinado e há muito ela o aguardava.
Alguém fizera referência à chegada da
corte real da Babilónia e aos quatro reis fugidos do baralho. Arengas confusas
e contraditórias, pedaços de adivinhas, uma excitação repentina incendiando a
tarde.
Maria Gina com nada se espantava,
habituada a ver visagens, a ouvir vozes, a tratar com assombrações: o
lobisomem, a mula-sem-cabeça, o gigante Adamastor, a senhora dona Sancha
coberta de ouro e prata e o rei Salomão com o manto de estrelas.
Tímida e pacata, avelhantada, vivia no
seu canto, enrolada em trapos, nos lábios um sorriso medroso e permanente,
falando sozinha ou conversando sabe Deus com quem - ela certamente saberia mas
guardava reserva, e, quando perguntavam, punha um dedo sobre os lábios em sinal
de segredo e o sorriso se ampliava.
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