terça-feira, setembro 30, 2014

Fadul reconheceu os violinos
TOCAIA GRANDE

(Jorge Amado)

Episódio Nº 62


















De Pergentino, Maninho sabia pouco, mas sendo homem do coronel Boaventura devia ser brioso e prudente ao mesmo tempo, na medida do capitão Natário da Fonseca.

 Medo lhe fazia Dorindo por calado e ofendido; o que têm de inofensivos os cornos mansos, sujeitos desprezíveis mas isentos de maldade, têm de perigosos, de imprevisíveis, aqueles inconformados que se recusam a carregar os chifres reais ou imaginários.

 Comem-se por dentro e quando explodem não há quem os contenha em sua fúria.

Cruzando o rio sobre as pedras escorregadias, Maninho sustinha o cambaleante Valério Cachorrão, mas se preocupava sobretudo com Dorindo.

Desembocaram no cerrado por detrás das carroças e assim ficaram impedidos de ver o que se estava se passando.

Ouviram, porém, um som de tal maneira inusitado que nem o próprio Maninho pudera classificá-lo, quanto mais os outros,

O som cresceu e se elevou, melodioso: era música, sim senhor, mas não de harmónica, violão ou cavaquinho. Música de igreja não seria tampouco pois, apesar de tocante e linda, nada tinha de solene, era branda e vibrante, alegre e melancólica, tudo de vez e ao mesmo tempo, e dava vontade de dançar.

 Maninho jamais escutara coisa tão bonita e comovente em toda a sua longa vida. Não tinha idéia de quantos anos carregava no lombo, da idade exacta, mas a carapinha começara a embranquecer.

Os quatro homens vindos do armado, três deles dispostos à vingança e à punição, a recuperar bens preciosos, moedas e mulheres, a expulsar os ciganos na compulsão das armas, sustiveram a marcha quando a melodia subiu até às estrelas e se espalhou na mata.

Também os animais, onças, serpentes, grilos e corujas, pararam para ouvir. Maninho compreendeu então por que os sapos de ouvido fino, haviam suspendido o canto.

Para avançar, os valentões diminuíram o passo, cautelosos; transpuseram as carroças e enxergaram a cena singular.

Ali estavam, plantadas, as desaparecidas raparigas, todas as oito, umas sentadas, outras de pé. Dois dos forasteiros -  um era Maurício, o outro era Miguel - empunhavam instrumentos dantes nunca vistos naquelas paragens, e tocavam para a plateia de putas e ciganos.

Maria Gina chorando e rindo, José, brincos nas orelhas, anéis nos dedos, Bernarda próxima à avó das bruxas que lhe dissera a sina, Malena amamentando uma criança, Alberto amparando-a com o braço, todos os demais, velhos, moços e meninos.

Num silêncio de pedra, a corte real da Babilónia e a lua cheia.

Quem não diminuiu o passo foi Fadul Abdala que chegava acompanhado de Dudu Tramela: o moleque queria ver para contar.

O turco vinha correndo, para alcançar a tempo os baderneiros.

Ao rumor dos gravetos partidos, desencostou-se de um pé de pau o vulto magro de Coroca. Encarou o grupo e, severa, colocou um dedo sobre os lábios exigindo silêncio: foi obedecida.

 Fadul reconheceu os violinos.

Caindo de bêbado, Valério Cachorrão deu um passo à frente, fez um gesto com o braço para que os outros o acompanhassem, não adiantou.

Ainda tentou empunhar a garrucha, porém Maninho tomou-lhe a arma, sem maior esforço. Também Dorindo, ao perceber
Guta sentada no chão, escutando embevecida, quis gritar-lhe o nome, xingar-lhe a mãe, chegou a abrir a boca mas o turco a tapou com a mão disforme.

Coisas do Cão, o pardo Pergentino fez o sinal-da-cruz. E nada além disso aconteceu.

Josef veio de trás e se juntou a Mauricio e a Miguel: não parecia um rei, parecia um deus da mata virgem. Acrescentou ao dulcíssimo som dos violinos o divino mistério da flauta de Pan no concerto das czardas naquela noite dos ciganos em Tocaia Grande.

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