quinta-feira, setembro 04, 2014

Quem sabe, Bernarda mostraria um ar da sua graça
TOCAIA GRANDE

(Jorge Amado)

Episódio Nº 43


















Rasgava com as mãos potentes a jaca mole, amarela ânfora de mel; com os dedos retirava os bagos suculentos, o sumo escorria-lhe pelo canto da boca.

Assava na brasa o pedaço de charque -  encomendara um espeto a Castor Abduim, mestre ferreiro astucioso, pulso forte na bigorna, martelo maneiro no remate. A gordura da carne seca pingava sobre a farinha de mandioca, não podia haver nada de melhor sabor, guloseima mais grata ao fino paladar de um grapiúna.

 Um naco de charque, um punhado de farinha e, para cortar o sal, bananas - prata bem maduras. Misturavam-se os sabores e os perfumes da jaca e do jabá, das bananas e da rapadura, dos cajás, das mangabas, dos umbus.

Em dias de gula e de refinamento, numa ponta de galho aparado a canivete enfiava uma banana-da-terra e a tostava até vê-la cor de oiro, rasgada pelo calor. Para evitar que se queimasse, a envolvia numa camada de farinha, depois de descascá-la: gostosura.

A viração chegava da correnteza do rio, as putas repousavam da jurema da noite; Tição saía para recolher a caça e substituir as trampas.

Os cabras no armazém de cacau e os trabalhadores que construíam o curral para o gado do coronel Robustiano de Araújo ainda não haviam começado a labuta do dia. Somente o trinado dos pássaros rompia o silêncio de Tocaia Grande.

 A hora predilecta de Fadul: bebido o café bem quente, sentava-se no batente da porta, acendia o narguilé, percorria com a vista os aprazíveis arredores: o vale, o rio, os montes, as árvores e o acanhado casario - Grão-Turco repousando em seu império.

Dali não arredaria pé: nem por conselho de doutor, nem por ameaça de jagunço, nem por engodo de mulher. Ainda não nascera fêmea capaz de obrigá-lo a desistir, de mudar o curso do destino.

Quem perde a cabeça por mulher a ponto de abandonar o uso da razão acaba na penúria, objecto de riso e de debique, avacalhado.

Viesse Zezinha do Butiá à frente de um cortejo de entrudo, integrado pelas damas mais galantes dos cabarés de Ilhéus e de Itabuna, nem assim conseguiria levá-lo a cometer um desatino.

Nenhum rabo-de-saia, fosse Zezinha, mulher da vida, xodó de rua de canto, fosse a donzela Aruza, um partidão, ou Jussara Ramos Rabat, viúva rica, noivas oferecidas, uma e outra sedutoras e enganosas.

São diversas e desiguais as tentações a que está sujeito um bom cristão, todas pejadas de ilusório encanto e de real perigo.

Enquanto retemperava seus propósitos, mantinha a margem do rio sob vigilância, sobretudo o trecho onde ficava o “bidé das damas”, nome dado por Castor, negro chegado a francesises, à bacia de pedras, encachoeirada, na qual as raparigas vinham banhar-se e lavar a roupa.

Quem sabe, Bernarda mostraria o ar de sua graça e nova em folha após o banho aceitaria povoar de festa e faceirice o vazio da manhã?

Bernarda, obscuro enigma. Chegara a pensar outrora que ela lhe concedia preferência na súcia de enamorados de suas prendas pois deixava-se ficar horas a fio a ouvir histórias das
Mil – e - Uma - Noites, contos da carochinha, episódios da Bíblia, especialidades do turco, e na cama pelejava acendida em fogo, derretida em riso.

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