Em Tocaia Grande era um homem livre. |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 120
A
correnteza cobria e descobria os encantados; o rio levou embora o cotoco de
sabão.
2
Durante o dia a pasmaceira, o tédio.
Habituado à convivência e à festa, o negro Castor Abduim da Assunção, Tição de
apelido, padeceu melancolia, carência e desamparo quando arriou os teréns
naquela remota sesmaria para nela elevar casa de pedra e cal.
Purgou seus pecados, se os tinha, mas não
fugiu ao desafio da imensa solidão.
Decidira sozinho, responsável único,
senhor de seu destino. Recorrera ao coronel Robustiano de Araújo obtendo dele empréstimo
indispensável para instalar a forja, mas não lhe pedira conselho nem lhe
prestara satisfação; nem a ele nem a ninguém.
Assim agia desde que escapara da morte
certa ao fugir, ainda adolescente, dos canaviais de Santo Amaro. Órfão de escravos
forros, destinado por capricho de gringa a bufão e a lacaio, desafiara o baraço
e o cutelo, a polícia e os capoeiras, o poder do senhor de engenho, rompera as
cadeias da servidão.
Ninguém mandava nele: ao castigar o
Barão, extinguira o medo e a obediência.
Cabeça posta a prémio, abandonou a
perene festa do Recôncavo, deixando para trás e para sempre o brilho e a
ostentação do açúcar: a casa-grande, a capela, as cavalariças, o engenho, o
alambique, a bagaceira.
Não voltaria a acompanhar as procissões atrás
dos andores dos santos, cada qual mais rico de ouro e prata; nos esconsos da
antiga senzala, outro ogam assumiria.
O rumpi na orquestra dos atabaques para
o toque do alujá em honra de Xangô nas noites dos orixás, cada qual mais
imponente com os eirus, os xaxarás, os abebês.
Voltara as costas às sinhás e às
mucamas, aos requi ntes adulterinos
das fidalgas, ao esplendor das mulatas perfumadas de alfazema. Abandonara para
sempre e nunca mais os luxos de Oropa, França e Bahia, os canaviais, os batelões
nas águas do Paraguaçu, a civilização dos senhores açúcar assentada no lombo
dos escravos.
Saudades somente de seu tio Cristóvão
Abduim, ferreiro exímio que lhe ensinara o oficio, alabê incomparável da
orquestra no chamado do adarrum, que o iniciara no toque dos atabaques.
O Recôncavo era uma festa só, mas Tição
não sentia falta da festa do Recôncavo. Contentava-se com o diminuto e xucro
rancho de mulheres perdidas, amava a inculta paisagem grapiúna, as grandes extensões
de mata virgem e o deslumbre amarelo das roças de cacau.
Nos folguedos do engenho coubera-lhe o
posto de obscuro figurante: serviçal, mero criado doméstico mesmo quando
fornicava a Senhora Baronesa na alcova da casa-grande, nos alvos lençóis de
linho do Senhor Barão.
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