terça-feira, janeiro 13, 2015

São adoráveis e nós não os educamos...
A Divina Comédia














A criancinha quer Playstation. A gente dá.
A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.
A criancinha quer camisola Adidas e ténis da Nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.
A gente assiste a tudo isto, a esta permissividade dos pais e conclui que as crianças estão entregues a elas próprias, sem rumo, sem destino, dependentes da sorte e de alguns genes hereditários de carácter que ainda possam resistir ao desleixo, ao descuido à irresponsabilidade dos pais. E os avós, impotentes, assistem... deixaram de entender o mundo que os rodeia.
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher, desperta e, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.

A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. 

Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha?
Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos congressos e debates para nos entretermos.

Miguel de Carvalho - Artigo publicado na Revista VISÃO



NOTA

Assisti, infelizmente impotente, a muito disto na qualidade de avô do coração, de uma neta, hoje com 9 anos, e que era adorável até aos 2, 3 quando se começou a fazer sentir a permissividade do comportamento da mãe e da avó, esta por arrastamento, num desafio de quem gostava mais da menina.

Pertenci a outra geração em que as crianças eram educadas com excesso de austeridade, "sem porem pé em ramo verde", como então se dizia, mas, se estamos num contrabalanço, no extremo de dois males, então eu preferia o primeiro.

Será que os pais do antigamente que elevavam a autoridade e o rigor a principal valor da educação, gostavam menos dos filhos do que os pais de agora?

De certeza que não. Nesses tempos, toda a sociedade ajudava ao rigor na educação dos filhos. Hoje, violados os valores do respeito e da autoridade em que assentava essa educação, para o que muito contribuiu a Revolução do 25 de Abril que funcionou como o destapar de uma panela de pressão, procura-se agora um equilíbrio, uma bissetriz que se ajuste melhor aos interesses de ambas as partes num objectivo muito difícil de conseguir.

Pais e filhos têm de dialogar, o que antigamente não acontecia, mas a última palavra tem de ser dos pais, Aqui, ente pais e filhos, a democracia não deve nem pode funcionar porque os primeiros não se devem demitir das suas responsabilidades.

Claro que é mais trabalhoso. Ao contrário do antigamente, hoje, a sociedade não ajuda e com a crise do desemprego, muito menos. Em muitos lares vive-se uma realidade desgraçadamente nova e é fácil imaginar como certas situações  de carência são dramáticas nas relações entre pais e filhos, especialmente naqueles casos em que os hábitos de consumismo não prepararam, uns e outros, para as dificuldades destes tempos. 

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