A criancinha quer Playstation. A gente dá.
A criancinha quer estrangular o gato. A gente
deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a
sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas.
Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha
para o lado e ela incha.
A criancinha quer camisola Adidas e ténis da
Nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da
escola e é perigoso ser diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até
tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no
restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.
A gente assiste a tudo isto, a esta
permissividade dos pais e conclui que as crianças estão entregues a elas
próprias, sem rumo, sem destino, dependentes da sorte e de alguns genes hereditários
de carácter que ainda possam resistir ao desleixo, ao descuido à
irresponsabilidade dos pais. E os avós, impotentes, assistem... deixaram de
entender o mundo que os rodeia.
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se
projecto de homem ou mulher, desperta e, já mais crescida, começa a pedir
mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa
da moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano,
outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida
stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás.
Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem
referências, inicia o processo de independência meramente informal. A rebeldia
é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e
não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são
«uma seca».
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um
berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás
abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica
traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os
papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala
e na dúvida entre a conta de um eventual psiqui atra
e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e
espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se
armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30
anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar
a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego.
«Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».
Não é este um fiel retrato da realidade dos
bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio
da navalha?
Pois não, bem sei. Estou apenas a
antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital
com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos
muitos congressos e debates para nos entretermos.
Miguel de Carvalho - Artigo
publicado na Revista VISÃO
NOTA
Assisti, infelizmente impotente, a muito disto na qualidade de avô do coração, de uma
neta, hoje com 9 anos, e que era adorável até aos 2, 3 quando se começou a fazer
sentir a permissividade do comportamento da mãe e da avó, esta por arrastamento, num desafio de quem gostava mais da menina.
Pertenci a outra geração em que as crianças eram educadas com
excesso de austeridade, "sem porem pé em ramo verde", como então se
dizia, mas, se estamos num contrabalanço, no extremo de dois males, então eu
preferia o primeiro.
Será que os pais do antigamente que elevavam a autoridade e o
rigor a principal valor da educação, gostavam menos dos filhos do que os pais
de agora?
De certeza que não. Nesses tempos, toda a sociedade ajudava ao
rigor na educação dos filhos. Hoje, violados os valores do respeito e da
autoridade em que assentava essa educação, para o que muito contribuiu a Revolução
do 25 de Abril que funcionou como o destapar de uma panela de pressão,
procura-se agora um equi líbrio, uma bissetriz
que se ajuste melhor aos interesses de ambas as partes num objectivo muito difícil de conseguir.
Pais e filhos têm de
dialogar, o que antigamente não acontecia, mas a última palavra tem de ser dos
pais, Aqui , ente pais e filhos, a
democracia não deve nem pode funcionar porque os primeiros não se devem demitir
das suas responsabilidades.
Claro que é mais trabalhoso. Ao contrário do antigamente, hoje,
a sociedade não ajuda e com a crise do desemprego, muito menos. Em muitos lares
vive-se uma realidade desgraçadamente nova e é fácil imaginar como certas
situações de carência são dramáticas nas relações entre pais e filhos,
especialmente naqueles casos em que os hábitos de consumismo não prepararam,
uns e outros, para as dificuldades destes tempos.
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