cair morto
A notícia de que a família Espírito Santo não tinha um único bem em seu nome elucidou-me sobre o tipo de sociedade em que vivemos, aonde chegámos.
Juristas meus amigos
garantiram-me que é perfeitamente legal um cidadão, ou cidadã, ou uma família não
ter qualquer bem em nome próprio. Nunca tinha colocado a questão da ausência de
bens no quadro da legalidade, mas no da necessidade.
Acreditava que pessoas
caídas na situação de sem-abrigo, refugiados, minorias étnicas não enquadradas
como algumas comunidades ciganas podiam não ter nada em seu nome, mas até já
ouvira falar no direito a todos os cidadãos possuírem uma conta bancária, um
registo de bens, nem que fosse para prever uma melhoria de situação no futuro.
Considerava um acto de reconhecimento da cidadania ter em seu nome o que pelo
esforço, ou por herança era seu. Chama-se a isso “património”, que tem a mesma
origem de pai e de pátria, aqui lo
que recebemos dos nossos antecessores e que faz parte dos bens que constituem a
entidade onde existimos.
Estes conceitos não valem
para os Espirito Santo, para estes agora desmascarados e para os da sua
extracção que continuam a não ter bens em seu nome, mas têm o nome em tantos
bens, em paredes inteiras, em tectos de edifícios, em frontarias, em
supermercados, em rótulos de bebidas.
Imagino
com facilidade um dos seus advogados e corifeus, um Proença de Carvalho, por
exemplo, a bramar contra a injustiça, contra o atentado às liberdades
fundamentais dos pobres a nada terem, à violência socializante e colectivista
que seria obrigar alguém a declarar bens que utiliza para habitar, para se
movimentar por terra, mar e ar, para viver, em suma.
A legalidade do não
registo de bens em nome próprio para se eximir ao pagamento de impostos e fugir
às responsabilidades perante a justiça é um exemplo da perversidade do sistema
judicial e da sua natureza classicista.
Esta norma legal destina-se a proteger ricos
e poderosos. Quem a fez e a mantém sabe a quem serve. Os Espirito Santo não são
gente, são empresas, são registos de conservatória, são sociedades anónimas,
são offshores com fato e gravata que recebem rendas e dividendos, que pagam
almoços e jantares.
Não são cidadãos. As cuecas de Ricardo Espirito Santo não
são dele, são de uma SA com sede no Panamá, ou no Luxemburgo. A lingerie da
madame Espírito Santo é propriedade de um fundo de investimento de Singapura,
presumo porque não sou o contabilista.
Mas a ausência de bens
registados pelos Espirito Santos em seu nome diz também sobre a sua
personalidade e o seu carácter. A opção de se eximirem a compartilhar com os
restantes portugueses os custos de aqui
habitar levanta interrogações delicadas: Serão portugueses? Terão alguma raiz
na História comum do povo que aqui
vive? Merecem algum respeito e protecção deste Estado que nós sustentamos e que
alguns até defenderam e defendem com a vida?
Ao declararem que nada possuem, os Espírito
Santo assumem que não têm, além de vergonha, onde cair mortos!
O ridículo a que os Espirito Santo se sujeitam com
a declaração de nada a declarar com que passam as fronteiras e alfândegas faz
deles uns tipos que não têm onde cair mortos, uns párias.
A declaração de “nada a declarar” em meu nome, nem
da minha esposa, filhinhos e restante família dos Espirito Santo, os Donos
Disto Tudo, também nos elucida a propósito do pindérico capitalismo nacional:
Os Donos Disto Tudo não têm onde cair mortos! O capitalismo em Portugal não tem
onde cair morto!
Resta ir perguntar pelas declarações de bens dos Amorins, o mais rico
dos donos disto, do senhor do Pingo Doce, do engenheiro Belmiro, dos senhores
Mellos da antiga Cuf, dos senhores Violas, dos Motas da Engil e do senhor José
Guilherme da Amadora para nos certificarmos se o capitalismo nacional se resume
a uma colecção de sem abrigo que não têm onde cair mortos!
É que, se assim
for, os capitalistas portugueses, não só fazem o que é costume: explorar os
pobres portugueses, como os envergonham.
Os ricos, antigamente, mandavam
construir jazigos que pareciam basílicas para terem onde cair depois de mortos
– basta dar uma volta pelos cemitérios das cidades e vilas. Os ricos de hoje
alugam um talhão ao ano em nome de uma sociedade anónima! Os Espirito Santo,
nem têm um jazigo de família!
Eu, perante a evidência da miséria, se fosse
ao senhor presidente da República, num intervalo da hibernação em Belém,
declarava o território nacional como uma zona de refúgio de sem-abrigo, uma
vala comum e acrescentava a legenda na bandeira Nacional: “Ditosa Pátria que
tais filhos tem sem nada!”
Carlos de Matos Gomes
( Coronel do Exército reformado e um escritor português)
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