Largo do Seminário em Santarém |
Hoje é Domingo
(Na minha cidade de Santarém em 5/4/15)
A vida
é fugaz, um sopro, um suspiro, um pestanejar. Antes, o nada, depois, o nada de
novo. Entre os dois nadas, a vida.
Debruço-me
sobre ela, braço esticado, revolvendo com os dedos da minha imaginação as
recordações que por lá existem. Puxei uma ao acaso, já amarelecida pela
idade…há quantos anos!
Eu
teria para aí os meus dezanove, vinte anos, estudava então na Escola Superior
Colonial que em 1961 mudou para Instituto Superior de Ciências Sociais e
Política Ultramarina por causa dos novos ventos da política
internacional de então.
O meu pai, com muitas dificuldades conseguira alugara-me
um quartinho numa casa particular, pertença de mãe e filha, viúvas, que para
sobreviverem arrendaram três quartos que milagrosamente conseguiram fazer
sobrar de um primeiro andar do velho prédio de azulejos azuis que dava para o
Jardim do Príncipe Real - tal como as magníficas portas do Palacete onde então funcionava o meu Instituto.
Estávamos no primeiro ano da década de 60.
Em Janeiro, a 22, Henrique Galvão numa operação com o nome de código Dulcineia -
surripiou, em pleno alto-mar, o paquete Santa Maria para desespero de
Salazar que ficou possesso e regozijo da tímida oposição.
Lembro-me perfeitamente de parar no passeio
para ver o cabeçalho do jornal “O Século” que relatava, com uma grande
fotografia do paquete, a notícia que tinha foros de escândalo nacional.
Ri-me para dentro como o cão Mutley.
Estávamos no tempo em que até o apontar para além de feio era perigoso.
Mas, quanto ao resto, tudo era calmo naquela
Lisboa pacífica e provinciana, e o meio estudantil universitário ainda tinha
que aguardar uns bons anos pelos ventos agitados de Maio de 68.
Nunca mais regressei ao “meu” Jardim do Príncipe Real onde nas horas de lazer me deliciava com as leituras do Pitigrilli e nas de aperto para os exames media forças com a sebenta de Princípios Gerais de Direito para tentar perceber aquelas vinte e tal páginas em que o Prof. Adriano Moreira explicava as diferenças entre Direito Público e Privado, que mais tarde, Freitas do Amaral, tornaria muito mais fácil com um terço das páginas.
Para além disto, era o retrato rotineiro dos jardins de Lisboa, com os magalas a namoriscarem as sopeiras, o polícia de giro andando solenemente, mãos atrás das costas, o fulano que vendia a banha da cobra e estacionado no passeio desertava sobre as maravilhas do produto, remédio milagroso que fazia bem a tudo e tinha a ver com uma cobra que toda a gente esperava ver quando ele abrisse a mala que estava no chão, a seus pés, e que afinal só guardava frascos da poção mágica que começavam a ser vendidos quando a conversa já não dava para esticar mais e o pessoal à sua volta ameaçava desertar.
E havia também um sujeito que parava muito
por ali, com ares de galã dos “pampas”, chuleco, morenaço, calças justas, botas à vaqueiro
e andar à Yul Brynner, muito na moda nessa altura, e ao que diziam as más línguas, punha os cornos ao Mister Cork, nosso vizinho do lado do Instituto, que tinha tanto de gordo e mesureiro para os clientes estrangeiros que acompanhava à porta dos táxis, como a mulher,
muito mais nova que ele, tinha de boa.
E finalmente havia a minha vizinha da cave e, como último personagem desta história de memórias, o malfadado rapaz do
trompete.
Ela era
uma jovem linda como os amores, o seu rosto, o de uma boneca que me deixava
fascinado como o passarinho se fascina pelo olhar da serpente.
Não a
podia ver à janela pois a cave onde ela vivia apenas dava para um pequeno e esconso saguão lá nos fundos do prédio, mas
sempre que nos cruzávamos à saída ou entrada da porta era um encantamento para
mim.
Segui-a
com o olhar e perguntava-me como é que uma rapariga tão linda podia sair
daquela cave escura, húmida e mal cheirosa em vez de um palácio a que a sua
beleza lhe dava direito.
Eu era um aluno universitário, coisa rara
naquele tempo, ela uma pobre rapariga que nem a 4ª classe teria e no entanto os
meus olhos enchiam-se com a sua figura e eu, tímido, sentia-me como um barco à
deriva aguardando a orientação de um olhar seu que nunca veio.
Nunca trocámos palavra, nem um simples
bom-dia, mas ela era definitivamente a eleita do meu coração, a musa
inspiradora dos meus sonhos… até que um dia despertei para a realidade ao som
de um estridente, agudo e desafinado trompete desesperadamente soprado por um
não menos desafinado músico… era o namorado.
Maldito, não só se tinha apropriado da minha secreta namoradinha como ainda por cima fazia-se anunciar junto dela com aquele maldito trompete!
Que desperdício, junto de uma rapariga tão linda tocava-me trompete… raios o
partam, como eu o invejei!
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