e a Religião
Helen Fisher, uma
das mais reputadas antropólogas norte-americanas, Profª. na Rutgers University,
chama a atenção para uma evidência que é a desproporcionada dimensão dos nossos
sentimentos amorosos comparado com o que seria o estritamente necessário.
Vejamos, do ponto de vista de um
homem, por exemplo, é pouco provável que uma mulher sua conhecida seja cem
vezes mais encantadora do que a sua concorrente mais próxima e, no entanto, é
assim que ele provavelmente a descreve quando está apaixonado por ela.
Seria mais racional uma qualquer
espécie de “poliamor” do que esta devoção fanaticamente monógama a que somos
tão susceptíveis.
Aceitamos perfeita e alegremente amar
mais que um filho, gostar de mais que um vinho, uma música, um livro ou um
desporto, etc., mas não achamos estranho a total exclusividade que esperamos do
amor conjugal.
Porquê? Tem de haver uma razão.
Hellen Fisher e outros demonstraram
que o estar apaixonado se faz acompanhar de estranhos e invulgares estados
cerebrais que incluem a presença de químicos que actuam no sistema neurológico,
verdadeiras drogas naturais características desse estado.
Os psicólogos da evolução concordam
que este comportamento irracional pode ser um mecanismo que assegura a
fidelidade de um co-progenitor o tempo suficiente para criarem juntos a
criança.
Do ponto de vista darwiniano, é
importante escolher um bom parceiro mas depois da escolha estar feita, mesmo
que ela seja má, é mais importante assumir a escolha e arrostar com todas as
adversidades, pelo menos até a criança estar desmamada.
Será a religião irracional um
subproduto dos mecanismos de irracionalidade, que por via da selecção, foram
originariamente incorporados no cérebro com vista ao enamoramento?
É verdade que a fé religiosa tem
aspectos em comum com o enamoramento e ambas têm muitas das características da
euforia induzida por uma droga viciante, no entanto, o neuropsiqui atra John Smythies adverte que existem diferenças
significativas entre as áreas do cérebro activada pela religião e o
enamoramento, mas também observa algumas semelhanças.
Uma das muitas facetas da religião é
o amor intenso centrado numa pessoa sobrenatural, ou seja, em Deus, acompanhado
pela veneração de ícones (palavra que vem do grego “eikon” e significa imagem)
dessa pessoa.
A vida humana é, em grande parte,
impelida pelos nossos genes egoístas e por processos de reforço e este é grande
no caso da religião: sentimentos reconfortantes e calorosos por sermos amados e
protegidos num mundo perigoso, pela perda do medo da morte, auxílio vindo não
se sabe de onde em resposta a preces em tempos difíceis, etc.
Da mesma maneira, também o amor
romântico por outra pessoa apresenta a mesma concentração intensa no outro e
reforços positivos correlacionados.
Também estes sentimentos podem ser
desencadeados por íconos da pessoa amada: cartas, fotografias, madeixas de
cabelo para além de se fazer acompanhar de manifestações fisiológicas como, por
exemplo, suspirar longa e repetidamente.
Esta semelhança numa relação de amor
por outra pessoa e por Deus está bem patente no relato de um padre católico
sobre os seus primeiros tempos de sacerdócio em que recorda a exaltação dos
primeiros meses em que teve o poder de rezar missa:
-“ Normalmente lento e preguiçoso a
levantar-me de manhã, agora saltava cedo da cama bem desperto e muito
entusiasmado só de pensar no momentoso acto em que tinha o privilégio de
desempenhar…”
- “ O tocar o corpo de Cristo, a
proximidade entre o padre e Jesus, era o que mais me fascinava. Olhava
fixamente para a hóstia, depois das palavras da consagração, de olhar lânguido
como um amante que mira os olhos da sua amada…”
- “ Esses primeiros tempos de padre
permanecem na minha memória como dias de realização e de fremente felicidade;
algo de precioso e ao mesmo tempo demasiado frágil para durar, como um caso
amoroso cedo interrompido pela realidade de um casamento incompatível.”
É conhecida a famosa visão
orgástica/mística de Santa Teresa de Ávila representada numa bela escultura em
mármore de Bernini, para a Capela do Cardeal Frederico Cornaro e que encima, à
direita, este texto.
É uma escultura da arte barroca que
representa Santa Teresa, plena de sensualidade e movimento, ferida por uma seta
de amor divino disparada por um anjo que bem nos lembra Cupido.
O biólogo Lewis Wolpert adianta uma
sugestão que pode ser vista como uma generalização da ideia de “irracionalidade
construtiva”.
Sustenta ele que para um espírito
inconstante, uma convicção irracionalmente poderosa funciona como protecção:
- “Se as crenças capazes de salvar
vidas não fossem fortes, isso teria sido desvantajoso nos primórdios da
evolução humana. Teria sido uma séria desvantagem, por exemplo, ao caçar ou ao
fabricar ferramentas, estar sempre a mudar de ideias”.
Por outras palavras, em determinadas
circunstâncias é preferível insistir numa crença irracional do que hesitar,
mesmo que nova evidência ou o raciocínio aconselhem a mudança.
No seu livro Social Evolution, Robert
Trivers, desenvolveu a sua teoria de auto-ilusão que consiste em:
- “Esconder a verdade do plano
consciente a fim de melhor a ocultar dos outros. Dentro da nossa espécie
reconhecemos que olhos esqui vos,
mãos transpiradas e voz rouca podem ser sinal da tensão própria de quem
conscientemente sabe que está a tentar enganar alguém. Ao tornar-se
inconsciente da sua mentira, aquele que engana esconde do observador estes
sinais. Ele ou ela podem mentir sem o nervosismo que acompanha o engano.”
O antropólogo Lionel Tiger diz algo
parecido sobre este tipo de “irracionalidade construtiva”sobre a qual temos
vindo a reflectir:
-“ Os humanos têm uma tendência
consciente para verem aqui lo que
querem ver e, literalmente, dificuldade em ver coisas que tenham conotações
negativas, ao passo que vêm com muita facilidade as positivas.”
A pertinência que isto tem para a
religião é óbvia, nomeadamente no que tem a ver com tomar os desejos pela
realidade.
Richard Dawkins defende a teoria
geral de que a religião é um subproduto acidental, um tiro falhado de algo útil
mas, sobre esta teoria, continuaremos no próximo texto uma vez que já não se
enquadra no título que demos a este.
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