Carlos Matos Gomes |
Racismo e preconceito
- por Carlos de Matos Gomes
A eleição que a direcção do Partido Socialista entendeu levar a cabo para
escolher o seu candidato a primeiro-ministro teve um efeito colateral: fez estalar
o fino verniz que cobre o racismo de muito boa gente com quem nos cruzamos nas
ruas, nos ecrãs de televisão e nas colunas dos jornais. De gente que nos dá
conselhos sobre o défice, o sistema político, a forma de sermos felizes. Isto a
propósito da cor da pele de António Costa.
A propósito desse assunto, que eu
julgava fazer parte das secções de tratamentos de beleza das revistas de
cabeleireiros e barbeiros, li e ouvi de tudo, não só de idiotas assumidos e
reconhecidos, mas de gente que julgava imune a essa doença. E o mais
surpreendente foi verificar que o preconceito era transversal, vinha de
mulheres e de homens, de pessoas que se afirmam progressistas, liberais,
abertos e de conservadores e reaccionários das velhas cepas do salazarismo e do
colonialismo. Só faltou o velho anúncio do restaurador Olex de não ser natural
um preto com carapinha branca.
O preconceito racista – neste
caso contra António Costa – prova a existência nos aparelhos políticos da noção
de que vale tudo na luta política, à esquerda e à direita. O preconceito
racista expôs as contradições dos dois grandes grupos da sociedade com os
elementos caracterizadores das suas ideologias. Os conservadores, a direita
nacionalista, que se assumem como os verdadeiros patriotas, os herdeiros das
glórias da nação que “deu mundos ao mundo” entram em conflito com a História de
Portugal, que glorificam e restringem à época de ouro dos descobrimentos e da
diáspora colonial. Uma certa esquerda, herdeira das revoluções francesa e
russa, entra em conflito com as ideias de igualdade.
O recurso ao argumento da cor da pele – um não branco, um hindu, um
preto, um monhé, um chamussa – por parte daqueles a que Eça de Queiroz
classificou de patrioteiros revela como o discurso salazarista do Portugal do
Minho a Timor, todos iguais, todos portugueses não passava de um slogan para explorar
os que não eram brancos.
Mais, revela como os exemplos da Exposição do Mundo Português de António
Ferro e de Henrique Galvão e da História do Matoso para o 2º ciclo dos antigos
liceus, utilizados pelo regime durante 40 anos não passavam de pura e reles
propaganda: o caso tão cantado da política de miscigenação de Afonso de
Albuquerque na Índia afinal era e é uma treta.
Os patrioteiros acham bem que os
valentes marinheiros portugueses tenham copulado com mulheres indianas, mas não
aceitam os seus filhos como portugueses de pleno direito. Cantaram e
apaparicaram a teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, mas afinal acham
que os mulatos só são bons para cantar, dançar e jogar à bola.
Mas nem tudo é ideologia. Há o
mercado, claro. O preconceito racista agora revelado contra António Costa tem
também uma forte componente de oportunismo político e partidário. António Costa
entra no mercado dos votos da esquerda e da direita. Por isso os aparelhos
partidários da esquerda e da direita utilizaram o argumento da cor para o
esconjurar. António Costa tem politicamente dois pecados: sendo de “cor”, não é
um pobre explorado, um trabalhador da construção civil, um operário, um
proletário.
Sendo um “homem de cor”, é também
um intelectual, um burguês. Não se enquadra nos estereótipos, incomoda uma
certa esquerda e uma certa direita. Ele é alguém cuja “cor” lhe permite ser adopt ado por minorias desfavorecidas como um dos seus e
colher o seu voto. O que essa esquerda não pode admitir. E também visto como
alguém que atingiu elevados patamares de sucesso “apesar da cor”.
Isto é, ele é excepcional, o que
uma certa direita não aceita, por ser um péssimo exemplo e um concorrente de
peso. Daí a acusação que alguém lhe fez de se ter maqui lhado
de branco para uma entrevista na TV, como quem diz: ele está a fazer-se de
branco, ele não é o “preto” que vos vai defender. Daí os comentários de fim de
semana dos gurus da direita nas TV: Passos Coelho que se cuide, que se ouviram
logo a seguir à votação. Daí ainda duas outras acusações: Uma: Costa é o
“mainato” o criado de Sócrates (como é preto não pode ser patrão de si mesmo).
Costa que diga qual é o seu
programa (como é preto não tem nada na cabeça. Já agora, qual é o programa de
Passos Coelho, o de Jerónimo de Sousa, o do Semedo e Catarina, ou até o de
Seguro, para não falar no de Portas?)
A utilização do preconceito
racista contra António Costa revela os limites da abertura ao mundo dos
portugueses, os seus medos e, no final, a sua mesqui nhez.
Revela porque somos pobres e marginais.
A expulsão dos judeus é
considerada hoje uma das causas da nossa decadência e do nosso
subdesenvolvimento, o preconceito racista está na mesma linha. Conheci Orlando
Costa, pai de António Costa, escritor, linguista demérito, Aqui no de Bragança, um dos grandes intelectuais que
pensava o papel de Portugal no mundo que se reorganizava após a IIGuerra, ambos
naturais de Goa; estudei num colégio com muitos colegas de África, quase todo o
comité central do PAIGC – Filinto Barros, Fidélis Almada, heróis como Areolindo
da Cruz… conheci intelectuais negros como Mário Cabral, como Mário Pinto de
Andrade, percebo agora melhor porque os afastámos de nós, porque fizemos deles
nossos inimigos na guerra colonial.
Perante o triste espectáculo do
racismo latente, profundo, revelado na campanha contra António Costa, percebo
hoje melhor o logro da chamada “política ultramarina” dos governos de Salazar e
de Caetano. Parece-me agora evidente que Amílcar Cabral, sendo português,
engenheiro agrónomo não podia ser chefe do governo de Portugal. Nem o médico
Agostinho Neto. Nem o professor Eduardo Mondlane, nem nenhum dos portugueses de
cor, mesmo que nascidos em Portugal, mesmo que formados em universidades portuguesas.
Isto é, esses homens e mulheres não eram e sentiram que não eram portugueses.
Eram Antónios Costas, que, logo
que se apresentassem a disputar um lugar de poder para o qual estavam
intelectual e profissionalmente capacitados, logo alguém lhes lembraria a cor
da pele.
Esta campanha de racismo contra
António Costa revela também a hipocrisia da homenagem nacional e
verdadeiramente popular que foi feita a Eusébio. Um artista de cor? Excelente.
Diverte-nos. Podemos exibi-lo. Um primeiro ministro de cor? Inaceitável. Coloca
em causa a nossa matriz. Esta campanha explica ainda o racismo e o preconceito
subjacente nas homenagens a “heróis da guerra do ultramar”. Heróis aclamados
porque nunca entenderam os direitos dos “de cor” a discordarem dos brancos, a
governarem-nos, se fosse caso disso, ou então a governarem-se sem tutelas.
Por isso, para esses, não é
admissível ter na presidência do governo alguém de “cor”, mesmo que nascido em S. Sebastião da
Pedreira, na Maternidade Alfredo da Costa (por acaso também ele um médico de
“cor”), licenciado em direito pela universidade de Lisboa, mas filho de um
intelectual e democrata Orlando Costa, descendente de goeses, brâmanes
convertidos ao catolicismo. Isso é que não pode ser! Ofende a pureza do sangue
celta, de onde saíram, pelo que vejo na televisão a cores, os loiros Passos
Coelho, Paulo Portas, Paula Teixeira da Cruz, Maria Luíz Albuquerque, Carlos
Moedas, o defunto António Borges, mas também Teresa Guilherme, a loiríssima
Lili Caneças, Ricardo Espírito Santo, e até, segundo alguns quadros, o menino
rei D. Sebastião, o responsável pelo maior desastre da nossa História.
PS
– Este ataque a
António Costa de que Carlos
Matos Gomes fala neste texto foi um bom pretexto para
desenterrar muito lixo do passado.
Eu
estive em Moçambique, local de portugueses racistas, uns envergonhados outros
assumidos e declarados que por lá viviam há muitos anos reconfortados pela
vizinhança do Apartheid na África do Sul.
De
um, lembro-me eu, trabalhava no meu Serviço e conheci logo à chegada a Lourenço
Marques em 1972, com quem me recusei a voltar a falar.
De
resto, o sistema colonial "era tão bom" que bastava desembarcar branco para logo
ser melhor que todos os pretos que lá estavam...
A
vizinhança da política do Aparthaid para o português saloio que chegava a Lourenço Marques ,
foi uma luz ao fundo do túnel... finalmente, ele era "alguém".
Julgava
que tudo isto era passado mas Carlos de Matos Gomes, mais atento, revela-me que
não e eu, ingénuo, a pensar que os monhés tinham ficado lá todos, enterrados,
com o sistema colonial...
Espero
que nas próximas presidenciais eles não voltem, insidiosos, a envenenar os
espíritos.
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